Acordei com um post-it na testa e uma sensação de embrulho no estômago. Inspirei olhando a mesa acima de mim e por um instante prometi a mim mesma que nunca mais ia beber, só para poder quebrar essa promessa algumas horas mais tarde durante o almoço.
Puxei o pedaço de papel grudado e li seu conteúdo me encolhendo em posição fetal para tentar domar meu estômago. "Olha seu celular" dizia o bilhete escrito numa letra de forma alta e bem desenhada.
Apalpei o chão ao meu redor tentando fazer o mínimo de movimento possível para encontrar meu celular, mas o objeto estava mais abaixo de mim poucos centímetros do meu pé direito. Usei meus dedinhos para agarrar o objeto e puxá-lo até minha mão.
Olhei primeiro minhas mensagens, depois cada uma das redes sociais que tinha, o que não eram muitas. Nada. Assim, por um tempo, me perguntei o que Kenny poderia ter feito com meu celular se ele não sabia a senha.
Foi então que tive um estalo. Abri minhas fotos me deparando com 461 fotos novas, naquele tipo em que ficam todas agrupadas em uma só. Passei elas para o lado criando um stop motion com as fotos. Kenny aparecia formando números com a mão com um sorriso enorme estampado. Gravei os números presumindo que era seu celular.
Engatinhei para longe da mesa em direção a porta. Usei a maçaneta para me erguer e sentir o mundo girar por um instante. Passei a mão pelo cabelo com um dedo prendendo em um dos nós. Eu precisava ir pra casa, precisava de um banho, precisava de um estômago novo.
Girei a maçaneta e sai do apartamento. Intuitivamente minha mão seguiu para o botão do elevador que já estava o andar. Entrei no elevador de serviço que não tinha um espelho. O que era ótimo, pois minha aparencia não deveria ser a melhor naquele instante.
Respirei fundo olhando os números, 26 era o último, a cobertura onde Kenny morava. Apertei no térreo não me deixando ser impulsiva demais e contendo minha habilidade de parecer uma completa maluca.
Sai do prédio com a luz do sol queimando minha alma. Cobri o rosto por alguns instantes enquanto caminhei pela rua. Parei quando encontrei um pequeno bistro classicamente francês, eu podia criticá-los, mas eu sempre acabava indo em direção aos clichês.
Sentei do lado de fora e pedi ao garçom algumas coisas do cardápio. Minha tia havia marcado de me encontrar para o almoço, mas algumas horas antes, ela já havia desmarcado. Como sempre algo mais importante apareceu e ela desmarcou com 30 minutos de atraso. Minha reação madura e racional foi pedir o vinho mais caro da casa e muito mais comida do que eu era capaz de comer (obviamente, eu levei os restos para a casa, porque eu não sou um monstro que desperdiça comida tão boa).
Com meu banquete sobre a mesa, peguei o celular e digitei o básico "hey", depois adicionei o "você", porém "hey você" soava completamente estupido. Então, dei um passo atrás e fui para o eterno clássico "olá", mas parecia formal demais. Apaguei tudo e fui para o atemporal "oi", mas então comecei a pensar demais e percebi que ele não tinha meu número, ou seja, a resposta pra esse "oi" seria, "quem tá falando?".
Acabei concluindo que a resposta ideal para meu dilema era enviar uma selfie com meu banquete dizendo: "acho que pedi comida demais, quer dividir?". E quando finalmente decidi ficar com essa opção, me arrependi instantaneamente. Que ideia estupida! Uma foto com comida? Estava parecendo que eu já estava convidando ele pra sair, sendo que eu nem conhecia ele. Por que eu tinha feito isso? Porque ninguém pegou meu celular e jogou no chão gritando "não seja idiota!".
Tentei calar meus pensamentos dando um gole no vinho que o garçom acabava de servir, só para perceber que detesto vinho, cuspir de volta no copo e receber um olhar de reprovação para a mulher que estava na mesa ao lado.
E, enquanto meu cérebro entrava em colapso e eu me retraia envergonhada, posso ver a tela do celular acender com uma mensagem.
Olhei a foto recebida: Kenny em frente ao microondas com uma lasanha dentro dele. A mensagem que seguia dizia "foi mal, se tivesse falado 12 min atrás - -' ". Senti o embrulho no meu estômago voltar e observei enquanto ele digitava.
Kenny: "Mas o que vc acha de pizza pra crl, meu cozinheiro deixou umas 12 congeladas, não julgue elas serem congeladas, são muito boas".
Observei as mensagens por um tempo sem saber o que dizer. Eu precisava de amigos, em especial, um que falava minha língua, além do que, eu não queria recusar pizza.
Eu: "Okok"
Alguns segundos depois recebi a localização de Kenny com o número do apartamento e o horário.
– Você pode embrulhar isso pra mim, por favor? – disse para o garçom que passava ao meu lado.
– Pardon? – ele me olhou confuso.
– Pouvez-vous emballer cela, S'il vous plaît? – repeti me sentindo ainda mais distante de casa.
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AURORA
Short StoryUma história sobre a vida da Aurora do Blue Cup Cafe. Aqueles mesmos capítulos aleatórios para lerem na ordem que quiserem. Adoraria receber sugestões de que momentos da vida dela vocês querem saber, queria poder escrever esse livro com a ajuda de...