Maria Eduarda me conheceu num barzinho sinistro na parte divertida da Rua Augusta. Ambiente escuro, quase sem ar, das laterais do teto descia devagar uma luz avermelhada até o meio das paredes, música eletrônica esquisita, a batida desconcentrava a gente, um sussurro indefinido de fundo dava tonteira na cabeça, vultos com olhos de gato se esbarrando.
Uma mão pegou a minha, pele seca e fria, me puxou com leveza, até com doçura. Semidespertei do transe da música e senti a parede fria nas costas, um corpo se colou ao meu; corpo que meu tato definiu como de mulher. Uma boca fria acariciou a pele sensível do meu pescoço…
Acordei com a cabeça rodando, pescoço dolorido, uma moleza desconfortável no corpo, calafrios. Estava deitado num banco da Praça da República e me lembrava do que aconteceu só até aquela boca tocar meu pescoço. Era meio da madrugada e ao meu lado uma moça de visual gótico, que nunca vi antes, amparava minha cabeça nas suas coxas. Na hora apalpei o bolso para ver se a carteira estava lá; estava… Se com o dinheiro que sobrou, não me lembro.
Bonita. Bem branca, até pálida, cabelos pretos, lisos e compridos, com a franja para a direita, olhos negros atrás de óculos de armação preta oblonga combinando com o queixo fino, rosto sério, boca pequena, bem vermelha, nariz arrebitado e voz macia. Na escuridão do barzinho, Maria Eduarda tropeçou em alguém caído e resolveu ajudar. Pronto, foi assim que nos conhecemos… Eu acho…
Assim que abriu a estação República ela me levou até em casa. Dentro da minha cabeça rodopiavam as imagens velozes e o barulho vertiginoso do metrô, as vozes pareciam de desenho aminado e eu sentia o chão macio e cheio de altos e baixos sob meus pés dormentes. Ela me segurava quando eu ia cair; sentia suas mãos frias e fortes apertando meu braço. Não me lembro de ter feito baldeação na estação Sé, nem de ter andado da estação Santa Cruz até meu apartamento, mas acordei no sofá desconfortável da minha sala. Não sei por onde Maria Eduarda saiu porque a porta estava trancada por dentro.
Nos encontramos algumas vezes, por acaso, sempre de noite, na Avenida Paulista, no Viaduto Santa Efigênia, depois em frente à Galeria do Rock e outra no Vale do Anhangabaú. Com esse mundo pequeno, não deu outra: Começamos a namorar.
A convivência me fez notar algumas de suas estranhezas: Maria Eduarda não gosta da luz do sol, diz que arde os olhos; tem as mãos e os pés frios, diz que é pressão baixa, mas as outras partes também são frias. Uma vez o síndico me interfonou dizendo que os vizinhos viram alguém entrar voando pela minha varanda e depois de rir muito da cara dele e dizer que minha namorada devia ter esquecido a chave, ao me virar, dei de cara com ela. Fiquei na dúvida se tinha feito uma cópia da chave para ela…
Maria Eduarda era uma enciclopédia! Qualquer assunto ela dominava e me falava de coisas que nunca ouvi antes: Histórias do passado, do presente e do futuro. Narrativas com detalhes de quem viveu tudo o que falava e aquilo me trazia a leveza de ser o homem mais feliz do mundo, de namorar uma mulher linda e inteligente!
Tivemos nossa primeira briga quando quis impressionar: “Assombração não me faz medo, não tremo diante de fantasma, de gente que vira bicho, de morto que chupa sangue. Esses não têm conceito comigo!” Maria Eduarda, com a sobrancelha esquerda erguida, fazia um esforço de titã para se controlar, ficou até ofegante, linda… Fechou a cara e respondeu com grunhidos: “Você devia ter mais respeito com o que não conhece! Que moral você tem pra falar disso? Já viu alguma assombração, por acaso?” Caí na besteira de perguntar se ela tinha medo de assombração e ouvi: “A assombração sou eu!” Passei o resto da noite tentando consertar meu fiasco (só mais um de tantos) e ela, com a sobrancelha esquerda erguida, me tratava com grunhidos monossilábicos.
Senti que Maria Eduarda era a mulher da minha vida na primeira noite que fizemos amor. Meu Deus! Por que não encontrei essa mulher antes! Quer dizer… por que ela não me encontrou antes!
Deliciosa, dominadora, assustadora, do jeito que eu gosto!
Maria Eduarda por cima, com seu corpo frio e gostoso, debruçada sobre o meu corpo trêmulo, segurando meus braços com força desproporcional, a boca no meu pescoço (dolorido) o tempo todo, às vezes tirava e estalava a língua e gemia “delííícia”.
Eu me debatia debaixo dela, sentia que ia perder as forças! Como se Maria Eduarda apertasse meu pescoço, faltou ar, o tesão aumentou, eu queria me libertar, eu queria ficar, me debatia debaixo dela, sua boca fria no meu pescoço, seus gemidos famintos, seus grunhidos de fera, minha visão embaçada, as forças acabando, seu corpo gostoso e frio se mexendo sobre o meu quase frio, névoa, calafrios, o pescoço doendo mais e…
Lá se foi a última reserva de forças num não sei quê revirando no baixo ventre, numa revoada de asas longas, num riff de guitarra, calor-frio-tremor na cavalgada de um corcel branco, de zero a cem por hora em meio segundo…
Acordei com dor de cabeça, tontura, o corpo dolorido, pescoço duro. Os olhos embaçados, aos poucos, viram Maria Eduarda sentada no chão, ao lado da cama, olhando para mim:
Oi, doçura!
Ouvi longe a voz meiga da minha estranha namorada de bochechas rosadas e aparência saudável.
Oi, princesa…
Gemi. Não tive forças para sair da cama…
Aquele olhar por trás dos óculos me fazia perder a razão das coisas que gostava e me rendia ao que ela quisesse, ao que ela mandasse. Qual um rato em direção às mandíbulas da cobra eu não tinha forças para dizer não e essa sensação de impotência me excitava. Quando dava razão de mim, de que podia escolher, já era tarde.
Maria Eduarda não ria, nem sorria; havia serenidade no seu rosto, tanto quando estava pálida, quanto corada. Às vezes achava que ela ia sorrir, mas era só a curvatura natural que o rosto assumia quando falava alguma palavra começada com “A”.
Um dia vi uma coisa que me intrigou, ou deixei de ver, não sei bem… Por causa do banho quente que tomei, o banheiro ficou cheio de vapor e o espelho embaçado. Passei a mão para desembaçar e enquanto olhava minha cara de doente, fiquei tonto, meus joelhos se dobraram e senti as mãos frias da Maria Eduarda me agarrarem por trás. Antes de desmaiar vi no espelho a minha imagem e só a minha.
Havia alguns dias que eu sentia uma fraqueza mais forte que o normal. Não conseguia mais trabalhar, me concentrar, quase um delírio, Maria Eduarda na minha mente, dando pouco significado à tudo mais que me rodeava. Só ela fazia sentido.
Depois desse desmaio, não me recuperei mais; nem a Maria Eduarda. Dia a dia, ela envelhecia! O amor tem dessas coisas mesmo…
Maria Eduarda! Não aguento te ver assim, meu amor! Você tá se acabando por minha causa…
E ela me olhava com os olhos afundados em olheiras arroxeadas, por trás dos óculos. Já se via fios de cabelos brancos e rugas fundas nos cantos dos olhos e na testa. Eu estava disposto a morrer para cessar sua queda vertiginosa no poço sem fundo da velhice. Maria Eduarda não me respondeu.
Quando acordei, depois de sei lá quanto tempo, ela estava sentada no chão, ao lado da cama, com a cabeça linda apoiada na mão esquerda, fazendo carinho no meu rosto cadavérico. Percebi que precisava de cuidados médicos naquela hora porque não via mais as coisas como eram: Maria Eduarda estava jovem outra vez, com as bochechas rosadas, lábios vermelhos, sem rugas, cabelos muito pretos e brilhantes, maravilhosa como a conheci. Apaguei…
Até perdi a noção de quanto tempo estávamos juntos. Também não sei quanto tempo dormi; ou será que estava desmaiado? Num esforço de velho fraco que levanta para ir ao banheiro, cheguei até a cozinha. O que achei que vi me fez ter certeza da precisão de um médico urgente!
Parece que vi Maria Eduarda espremer um pedaço de fígado e chupar o caldo vermelhão que escorria. Depois, como uma fera, rasgou a carne mole e nojenta com os dentes. Daí em diante não sei o que aconteceu, mas acordei num hospital com um médico me dizendo:
É, seu Carlos! Quase você foi pro beleléu, heim!
O que eu tô fazendo aqui? O que aconteceu, doutor?
Você tá com uma anemia muito forte. Vai ficar um tempinho aqui com a gente!
No hospital, a rotina do moribundo muda e ele presta mais atenção no relógio que nos pensamentos. Como eu me alegrava quando a hora da visita chegava, só a Maria Eduarda não chegava…
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Creepypastas - Contos De Terror
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