Me levanto como se a cama pegasse fogo. Mais um pesadelo, mais uma inquietude. Passo a mão no rosto para tirar a sensação de agonia que adentra meu corpo e respiro fundo
"Calma,cara,é só a porra de um pesadelo"
Caminho até o banheiro mas a sensação de estar preso ainda me assola, lavo o rosto e visto uma camisa. Preciso sair da casa antes que ela me leve as loucuras. Pego a chave do carro e desço as escadas de dois em dois degraus, quase caindo, mas não ligo, só quero sair o mais rápido possível e respirar um pouco de ar puro.
Abro a porta com minhas mãos trêmulas e sinto o vento frio e cortante passando pela minha pele e deixando um rastro de pelos arrepiados pela sensação repentina. Vou até o carro e entro começando a dirigir sem destino
A cidade toda dorme, não há um pé de pessoa na rua - que esteja sóbria - e isso alivia um pouco a tensão que estava em meu peito. Dirijo pelas avenidas, devagar sem muita pressa e quase bato com o carro quando vejo sua feição.
Ela caminha devagar de cabeça baixa no balaústre da ponte e não parece estar muito ciente do que está fazendo. Paro o carro apressado e abro vidro
- Moça! - tento chamar sua atenção mas ela da mais um passo, seus braços estão abertos e seus sapatos estão em uma mão, enquanto a outra está estendida no ar com a importante missão de equilibrar-la contra o vento frio
- Ei,moça! - Desço do carro e a puxo pro concreto onde ela está segura - O que pensa que está fazendo!? Você tá louca? Quer morrer?
Ela apenas me olha, como se estivesse me decifrando, olha fundo dentro dos meus olhos depois os passeia pelo meu rosto e por fim pelo meu corpo. Me sinto despido ao seu olhar crítico e por instinto sinto minhas bochechas corar. Ela me dá um minúsculo sorriso e faz menção de voltar para a balaústre e eu seguro seu pulso
- Não vai me responder? O que está fazendo? - ela olha pra mim com fúria nos olhos claros
- Não é óbvio? Estou andando na ponte! - ela tenta se desvencilhar de minha mão, mas não lhe dou o luxo de conseguir
- Não pode fazer isso, já viu a altura desse negócio? Se você cair não tem escapatória, garota! - ela fecha os olhos e suspira
- E não percebe que é isso que eu quero seu idiota? - ela puxa novamente seu pulso e eu me recuso a deixá-la ir - Me solte por favor.
- Não posso deixar você fazer isso...- solto o pulso dela e ela agradece com um aceno de cabeça
- A escolha não é sua - ela sobe novamente na balaústre fria e cinzenta, mas algo a faz se desequilibrar e ela escorrega com seu braço fino e sem forças segurando- se, quase caindo . Seu grito estridente e sua feição apavorada são as únicas coisas que consigo digerir enquanto a seguro para não cair, pego suas duas mãos e tento subir seu corpo leve que pende para baixo e que parece voar de acordo com o vento
- Por favor, me ajude, eu não quero mais ir! - ela fala em meio as lágrimas
- Calma, eu vou te ajudar, calma! - a puxo com toda a minha força possível e me sinto mais aliviado quando estou deitado no chão e seu peso pende sobre meu corpo.
Estamos ofegantes, deitados na pista gelada da ponte, ela por cima de mim com o rosto escondido nas mãos e o peito subindo e descendo depressa. A abraço e sinto seus tremores, seus soluços, seu desespero se esvaindo e vindo a tona sua tristeza
- Está tudo bem, você está a salvo agora. Está aqui comigo, nada de ruim vai acontecer! - ela me abraça forte e molha minha camisa com suas lágrimas
Quando olha pra mim, dessa vez, algo se acende e meu corpo reage de uma forma estranha. Tenho sensações diferentes que vão do meu estômago, para o meu coração e todo o resto do corpo e só para quando desvio os olhos, envergonhado.
- Qual seu nome? - falo meio trêmulo e receoso de olhar novamente em seus olhos, então me ponho a olhar para sua testa que possui um arranhão e sangra levemente
- Meu nome é Valentina, e o seu? - ela está sentada de frente pra mim, suas pernas estão dobradas e ela senta com apenas um lado do quadril, enquanto eu estou de frente para ela e minhas pernas estão em cada lado do seu corpo, instinto de proteção.
- Sou Kyle. - ela sorri e seca as lagrimas
- Kyle, o salvador. - olho para suas pernas que possuem marcas roxas e outras bem vermelhas
- O que...aconteceu ? - ela puxa o vestido florido para baixo a fim de se esconder e desvia o olhar de mim, fixando sua atenção em algum ponto atrás de minha cabeça
- Não foi nada, eu só estou um pouco bêbada só isso. - ela respira fundo e eu sinto a necessidade de cuidar dela, de ajuda-la
- Você está com fome? Posso comprar algo para você comer e depois te deixar em casa.
Ela não diz nada, seus olhos estão focados em algo que não consigo perceber, está imersa em sua própria mente e parece não me ouvir. Quando toco seu braço ela estremece e sai do meu toque tão rapidamente que me assusto
- Desculpe. Não posso, preciso voltar a caminhar, mas muito obrigada por...me salvar. - ela se levanta e começa a andar devagar me deixando sentado no chão que agora machuca o meu quadril
Vejo ela caminhar calmamente pela ponte, seu andar é quase sereno, seu corpo pequeno parecendo ser carregado pelo vento e pela vontade de liberdade, penso em ir atrás mas não me dou ao luxo disso. Ela não é nada minha, apenas a garota que salvei de uma morte terrível. Quando chega no meio do caminho seu corpo vai ao chão e corro ao seu encontro, com meu coração pulsando alto em meus ouvidos
- Valentina! - a pego em meus braços e viro seu rosto para mim, ela desmaiou e sua pele fria me assusta, passo a mão por sua bochecha e desesperado a pego em meu colo e levo para o carro, deitando-a no banco de trás.
Dirijo com pressa para o hospital, assim que chego e abro a porta do carro, os enfermeiros tratam logo de trazer uma maca e delicadamente a deitam, e a carregam para dentro de uma sala, me deixando desesperado do lado de fora, na recepção. Seus pertences estão em minha mão, um all star preto que me parece muito surrado e sua pequena bolsa que comporta apenas um maço de cigarro e duas notas de 50 dólares, fico imaginando aonde ela iria com tão pouco dinheiro e como ficaria quando o mesmo acabasse.
O tempo passa tão devagar que ponho de pé e a caminhar pela sala branca diversas vezes até me cansar. Quando me sento, começo a contar o número de cadeiras, o número de lâmpadas, o número de pessoas que vão e vem com a mesma pressa e agonia que estou nesse momento, talvez até mais.
Penso sobre a família dessas pessoas, ou por qual motivo estão em um hospital as 3 horas da manhã de uma quarta feira. Será que possuem um pai doente? Uma mãe? Um amigo? Ou também ajudaram a salvar uma moça em apuros de sua própria mente? Me forço a acreditar que tudo para essas pessoas vai dar certo, que qual for que seja a pessoa que ela está esperando vá ficar bem, mas nem sempre as coisas são tão fáceis para todo mundo.
- Senhor Kyle? - me levanto e vejo um enfermeiro em minha frente, sua expressão parece cansada e sua pele enrugada já não ajuda muito
- Sim? - falo, secando as mãos suadas no tecido de minha calça e é aí que percebo que estou vestindo moletom.
- A senhorita Valentina está bem, apenas um pouco desidratada, andou bastante e aparentemente não comia a dias...ela está tomando soro e se quiser acompanhar o quarto é logo ali - ele aponta para a terceira porta do corredor e eu agradeço fielmente sua ajuda.
Meus passos são largos e apressados para chegar até a porta marrom, ponho a mão na maçaneta e giro devagar, colocando um pé após ao outros com a intenção de não acorda-la
Me sento ao seu lado e olho para seu corpo magro e pálido, que agora está em uma roupa de hospital, procuro seu vestido e o vejo no criado mudo perto da cama, junto do seu celular. Seus cabelos negros pendem sob seu ombro ossudo e sua respiração é baixa e calma. Pego sua mão e está tão fria como se ela estivesse morta, sua feição não está tão boa, mas ainda é possível ver toda a sua beleza que não aparenta ser ofuscada pelos curativos na testa nem pela boca seca e branca pela desidratação.
Aliso o dorso de sua mão com o polegar e meu peito pesa só de pensar que talvez, nesse momento, ela não tinha ninguém além de mim. Que talvez, ela só tenha ela mesma e que não tenha mais nada a qual se segurar a não ser a morte, que ela tanto desejava.
Sinto uma forte dor no coração, um forte instinto de proteger essa garota que conheço tão pouco mas que mexeu com todo o meu ser apenas com o olhar.
O que será que aconteceu com essa garota tão linda? Quem seria capaz de machucar um ser humano tão pequeno e delicado? O que de tão ruim pode ter acontecido que ela não viu mais futuro na vida e almejava tanto a morte a ponto de se arriscar a cair de uma ponte? Minha mente palpita por respostas e na minha cabeça apenas roda a pergunta :
O que aconteceu com você, Valentina?•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•-•
é isso gente, espero que tenham gostado.
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Tédio, Insônia e Ideias
AcakSão apenas contos, textos e coisas que escrevo quando estou no tédio, ou com insônia ou com ideias. Espero que apreciem ❤️