dark girl

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Merda,merda,merda. Pronuncio o mesmo xingamento quantas vezes acho necessário enquanto dirijo descuidadamente pela avenida movimentada. Estou atrasada, cinco minutos pra ser mais exata, e estou desesperada! Minha mãe odeia atrasos, e sei que ela não vai gostar nem um pouco se eu chegar lá com 1 hora de atraso. Paro em frente ao gigante portão preto, já fechado e desço do carro apressada á procura do Sr. Almeida, porteiro do lugar e o senhor mais simpático da cidade.

- Sr. Almeida! Como o senhor está lindo hoje, cortou o cabelo? - dou meu melhor sorriso e ele olha pra mim por cima de seus óculos de armação um pouco antiquada

- Não cortei, mas obrigada srta. Diana – ele sorri mas continua não abrindo o portão, eu suspiro e mostro a caixa rosa que está em minhas mãos

- Então Almeida, que tal o senhor abrir o portão e nós comemos esses deliciosos donuts que eu comprei da sua padaria preferida? - ele olha pra mim, me analisando, enquanto eu pronuncio um ‘por favorzinho’ com minha cara de apelo

- Tudo bem, mas não conte a ninguém que te deixei entrar, você sabe que já fechamos.
Ele abre o portão devagar, devido ao peso e sua idade avançada, ao entrar dou um beijo em sua bochecha e sigo pela calçada meio gasta do lugar, já escuro e um pouco sombrio.

Caminho por entre os corredores ao ar livre, sentindo a brisa fria de fim de tarde e o sol se pondo no horizonte, la longe levando a luz consigo. Paro em frente á lápide já gasta de minha mãe e coloco o buquê de suas flores favoritas – azaleias- e me sento na grama, encostando minhas costas perto do seu nome cravado na pedra fria da lápide

Há anos, desde que minha mãe faleceu com um câncer no cérebro, eu venho até o cemitério da cidade pelo menos uma vez na semana para conversar com ela. Parece louco ou um ato digno de pena, mas eu não vejo desse jeito, apenas uma filha extremamente apegada a sua mãe, que necessita estar ao seu lado mesmo que seja indiretamente.

- Mãe, sinto que estou enlouquecendo. Semana que vem fará 4 anos que você morreu e eu não sei, eu ainda não consegui superar. – respiro fundo e olho pro céu parcialmente claro, com poucas nuvens

-  Eu estou sozinha aqui, sabe? Tudo bem, eu tenho alguns amigos mas.. eles não preenchem o vazio aqui de dentro mãe, só você me entende e me ajuda. – sinto as lágrimas escorrendo pelas minhas bochechas e nem me dou o trabalho de secar, sei virão muitas outras após elas.

Deixo minhas mãos desabarem ao lado do meu corpo enquanto o choro invade o meu corpo e me sinto mais pesada e respiro fundo, deixando o cansaço tomar conta do meu corpo. De repente não estou mais no cemitério, não sinto mais a grama pinicando a ponta de meus dedos, nem o vento frio balançando meus cabelos. Eu estou em uma sala de hospital, minha mãe está deitada em uma cama, imóvel e de olhos fechados, e eu estou do seu lado segurando sua mão, velando seu sono. Me vejo do outro lado do quarto e dou alguns passos, chamo meu próprio nome mas sou um fantasma aqui, me aproximo de meu eu.

Eu aparento cansaço, e minhas roupas estão amassadas como se eu não tive tempo nem para passa-las um ferro. Meu outro eu se levanta da cadeira, da um beijo em minha mãe e vai embora, caminho até a cama e tento pegar na sua mão fria, e no momento que meus dedos tocam a sua pele, os aparelhos que a mantém viva começam a apitar. Me afasto da cama assustada enquanto vários enfermeiros entram apressados pela porta, mexendo nela, fico paralisada no canto do quarto,  olhando toda a cena e reprimindo um grito, mesmo sabendo que se o soltar ninguém irá ouvir.

- Moça..- escuto uma voz de longe, procuro ao redor mas ninguém está preocupado comigo, eles nem sequer me veem – Moça! – sinto algo pegando no meu braço e solto um grito

Acordo de meu pesadelo e olho em volta, estou no cemitério novamente, olho em volta e já está escuro com apenas a luz parca do poste iluminando o lugar onde estive deitada. Um rapaz, um pouco alto e esguio me observa vestindo um macacão azul e com uma vassoura em mãos

- O que faz aqui ¿ - ele pergunta, passando a mão nos cachos negros e os bagunçando de imediato

- Eu...vim fazer uma visita, quem é você ¿ - falo me levantando e esfregando os olhos

- Eu que devo perguntar, já estamos fechados, não deveria estar aqui. – pego minha bolsa e olho em seus olhos, negros e um pouco escondidos pelas olheiras

- Bem, eu tenho alguns privilégios aqui. – rio meio nervosa e respiro fundo – mas obrigado por me acordar ou eu dormiria aqui mesmo até amanhecer

- De nada, mas você precisa ir, meu turno está acabando e eu preciso fechar tudo – eu sorrio e estendo a mão

- Meu nome é Diana, suponho que você vá me ver bastante por aqui – ele olha pra minha mão mas não se move para aperta-la

- Meu nome é Pete, e eu não vou ficar muito tempo por aqui então não se acostume, vamos eu acompanho você até a saída – eu abaixo minha mão e bufo

- Não preciso de sua ajuda – vou andando e sinto sua mão agarrar meu pulso

- Está muito escuro, você vai precisar de ajuda.

Nós vamos caminhando por entre as covas e lápides, algumas com flores e outras já esquecidas pelo tempo. Ele vai o tempo todo em silencio, apenas me analisando de canto de olho, enquanto passo meus dedos finos por todas as lápides em que passamos, sentindo as curvas das letras gravadas na pedra

- Eu sempre gostei de vir aqui, sabe ¿ - falo mais pra mim mesma do que pra ele – Acho que sou estranha por isso, mas sempre tive uma ligação muito forte com a morte. Primeiro meus avós, depois meu pai, minha melhor amiga...- rio ao lembrar do sorriso dela e de nossas brincadeiras

- Muitas perdas. – ele murmura, tão baixo que mal consigo ouvir

- E depois de muitos anos... eu perdi minha mãe, mas me formei em medicina e encaro a morte todos os dias. – suspiro – eu sou quase uma Edgar Allan Poe

- Ainda por cima é fã de clássicos – consigo ver um sorriso fraco em seus lábios e um covinha brincando em sua bochecha

- Eu sou uma mulher de cultura, Pete. – ele ri e balança a cabeça

- Então...você gosta de mortes, visitar cemitérios e dormir em lápides ¿ - eu olho pra ele de cara feia, tento pelo menos

- Eu não gosto de mortes, eu acho interessante o que ela causa nas pessoas, e eu não durmo em  lápides, eu so tive um turno de 20 horas seguidas e estou no meu horário de descanso, então...

- Você deveria descansar mais, trabalhar assim não faz bem pra nenhum ser humano vivo.

-  Que bom, por que não sei se sou um desses.
Chegamos a entrada e ele pega um molho de chaves em seu bolso, abre o portão e olha para mim

- Pronto, está livre.

- Obrigado por ter me acompanhado, Pete, te vejo semana que vem? - sorrio

- Você não tem vida social?- ele pergunta franzindo o cenho

- Você não ouviu nada do que eu disse ? Eu sou médica e me interesso pelo sentimento de luto, é obvio que eu não tenho vida social ! – ele ri e por um momento eu desejo ouvir mais daquilo. Ele estende a mão para mim e eu a aperto

- Foi um prazer te conhecer, Diana. – ele me dá um sorriso sincero e solta a minha mão

- O prazer é todo meu, Pete.

Eu vou embora, olhando para trás uma última vez, mas ele não está mais lá. Apenas o portão entreaberto por onde acabei de passar, sem pensar muito apenas entro no carro e sigo meu caminho pra casa sem deixar de pensar no rapaz alto de cabelo bagunçado que se interessou pela garota que dormia no cemitério.

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⏰ Última atualização: Jul 02, 2019 ⏰

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