Campo de Flores - Carlos Drummond de Andrade

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Deus me deu um amor no tempo de madureza,

quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

Deus—ou foi talvez o Diabo—deu-me este amor maduro,

e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos,

e outros acrescento aos que o amor ja criou.

Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso

e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não sabia

e cansada de mim julgava que era o mundo

Um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Amanhecem de novo as antigas manhãs

que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra

imensa e contraída como letra no muro

E só hoje presente.

Deus me deu um amor porque o mereci.

De tantos que ja tive ou tiveram em mim,

o sumo se espremeu para fazer vinho

Ou foi só sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa

a tirar sua cor dessas chamas extintas

era o tempo mais justo. Era tempo de terra.

Onde não há jardim, as flores nascem de um

secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor me faço espaçoso

para arrecadar as alfaias de muitos

amantes desgovernados no mundo, ou triunfantes

e ao vê-los amorosos e transidos em torno,

o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angustia amor ja me ofereceu

na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia

os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura

e o mistério que além faz os seres preciosos

à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,

Há que amar diferente. De uma grave paciência

ladrilhar minha mãos. E talvez a ironia

tenha dilacerado a melhor doação.

Há que amar calar.

Para fora do tempo arrasto meus despojos

e estou vivo na luz que baixa e me confunde. 



Ilustração: Lírios (1889) - Van Gogh  

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