Saltei para trás, no reflexo. O cara puxou o cachorro, antes que aquela boca enorme me alcançasse. Depois, ao sentir o líquido quente que eu havia derramado nele, o dono do cachorro afastou a regata de sua pele. Então, tirou a peça de roupa, revelando um corpo que, além de enorme, era cheio de músculos bem definidos. Minhas pernas tremeram, entre outras coisas, de medo.
— Desculpa! — Falei, a voz trêmula.
Fiz menção de levar minha mãos ao seu tórax, para tentar ajudar a limpar. Pensei que aquilo poderia parecer outra coisa, recuei. Agitei meus braços, perdido, sem saber o que fazer diante da cara de fúria daquele cara enorme. Então, desistindo, levei minhas mãos à boca. Estava perdido. Um murro dele me desmancharia.
— Desculpa? — Perguntou. — Desulpa? — Repetiu. — Olha o que você fez.
— Queimou?
Que pergunta idiota, Luan! Claro! Era café e não um chá gelado.
— Queimou, claro. Mas não é disso que eu tô falando. É da minha regata. Olha só, melou tudo. — Ele cheirou, como se fosse preciso, uma vez que o aroma do capuccino dominava o ar. — Café! Droga! Isso não vai sair. Seu desgraçado!
Ele deu um passo em minha direção e eu recuei mais um pouco. O cachorro latindo e ele puxando o animal pra trás.
— Calma! Calma! — Falei, colocando minhas mãos à frente do meu corpo, inclinadas pra cima por conta da altura dele. — Eu pago outra, novinha. Quanto foi? Eu tenho um dinheiro aqui... — Peguei a carteira, tirando tudo para contar. — Setenta... noventa e dois reais. Aqui, todo teu.
Estendi a mão que segurava o dinheiro, trêmula. Ainda pensava em qual ser humano se preocuparia mais com a camisa do que com a queimadura, que estava evidente em seu peito e abdômen com pele avermelhada.
— Primeiro, essa é uma regata Adidas Electric Reversible. Seu noventa e dois reais não compram uma.
— Eu moro aqui, nesse prédio. — Apontei, o interrompendo. — Posso ir lá pegar mais dinheiro e completo o valor.
Eu já calculava os minutos a mais de atraso em ter que subir até meu apartamento e descer novamente.
— Tu não tá entendendo. — Falou. — O problema não é dinheiro. Pode guardar isso. É que foi muito difícil encontrar essa camisa no meu tamanho e na cor branca. Difícil não, quase impossível. — Seus olhos agora lacrimejavam.
Sério?
— Eu não sei o que fazer então. Será que na internet...
E aquela muralha de músculos à minha frente se derramava em lágrimas. Eu nem podia acreditar. Um cara daquele tamanho, chorando, por conta de uma camisa.
Uma Regata Adidas Electric Reversible branca, Luan. Me corrigi, rindo por dentro. Diante da cena inusitada, me senti mais à vontade.
— Não. Já procurei outra, porque amo ela e...
Enquanto dizia as palavras, ele estendeu entre nós a camisa, para visualizar melhor o estrago. Então parou de falar, inclinando a cabeça para o lado, como se tentasse compreender uma obra de arte exposta em um museu. Naquele caso, seria uma pintura abstrata feita unicamente em tons de marrom.
A peça que antes era branca, com detalhes em preto nos ombros e em cinza na estampa que lembrava as ligações de um desses chips de computador, agora, estava totalmente manchada. Senti um frio na barriga, esperando ele voltar a ficar furioso, mas no lugar disso surgiu um sorriso. Fiz uma careta de confusão.
— Caralho! Olha pra isso, meu. Ficou muito da hora! — Ele falou, entusiasmado.
— Han?! — Foi o que consegui pronunciar.
— Vem cá!
Ele falou isso e partiu pra cima de mim. Mais uma vez tive certeza que ia apanhar, quando fui cercado e espremido por aquele monte de músculos... num abraço.
Eu acho que não acordei. Devo estar sonhando. Ou isso é uma pegadinha. Comecei a procura uma van estacionada ali por perto, ou alguém segurando uma câmera à distância.
— Tu é muito criativo, cara! — Disse, me soltando.
— Qual a brincadeira? — Perguntei. — Ou tu é louco mesmo? — Minha voz tinha se alterado, num tom de discussão.
— Como é que é? — Ele fez uma careta de raiva.
— Não, nada! — Dei um sorriso amarelo.
Medo.
— Talvez seja meu dom criativo. Eu crio bolsas. — Falei, entrando na loucura dele.
— Quero conhecer, então. — Se animou novamente.
— Passa na minha loja. Te dou um desconto, pelo incoveniente. — Eu disse, ainda sem acreditar que aquilo estava acontecendo.
Peguei um cartão na carteira e entreguei a ele.
— Valeu, cara. Ficou muito bonita a camisa.
— Por... nada? — Saiu assim mesmo, como uma pergunta. — Mas e a queimadura... — Apontei, realmente preocupado.
— Relaxa! Ele cuida de mim. Sansão! — Gritou o nome, que descobri ser do cachorro.
Quando o pastor alemão olhou, o cara deu um tapa no peito rubro, me fazendo arrepiar por pensar na dor. Mas ele não demonstrou sentir nada. O cão pulou, apoiando as patas em seu abdômen, também avermelhado. Nenhuma expressão de incomodo. Então, Sansão lambeu seu peito sujo de café. Uma cena bizarra.
As buzinas dos carros me tiraram do transe, me fazendo lembrar do meu atraso. Olhei o relógio. Droga! O sinal, que estava verde, voltou a ficar vermelho e nenhum carro se moveu. O desespero da bagunça em minha rotina tornou, a toda. Olhei o cara, que sorria enquanto o cachorro lambia o capuccino que ainda sobrava em seu corpo escultural.
— Ótimo! — Falei, começando a andar. — Eu tô atrasado. — Alcancei a rua. — A regata ficou linda. — Passei entre dois carros. — Te espero na loja! — Eu já gritava, pela distância.
O cara louco falou algo que não compreendi. Já estava correndo na direção do prédio.

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Dia, Lugar e Hora
Historia CortaA fixação que o jovem Luan Biagi tem pela sua rotina beira o TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo). E quando uma quinta-feira, que deveria ser igual a todas as outras, passa a sofrer interferências externas, atrapalhando assim seu itinerário habitua...