Los Angeles, EUA
Inverno de 2016
O interfone tocou às dezoito e cinquenta e seis, e eu ainda não estava pronta. Não que faltasse muito, eu só precisava escovar os dentes e passar o batom rosa que Clarice me emprestara, prometendo me deixar com uma imagem menos "garota problema".
É claro que eu continuava sendo a Lissie de sempre, com todas as minhas confusões de sempre, mas, mesmo assim, eu queria causar uma impressão de garota certinha, do tipo que não arrasa o coração do filho de alguém.
O interfone tocou de novo e dessa vez eram dezoito e cinquenta e oito. Ben tinha essa desconfortável mania de sempre estar adiantado.
— Sim? — respondi, ainda com a escova na boca, segurando o fone com a mão livre.
— Lissie? — a voz entediada de Max, o porteiro, soou. — Tem um cara aqui na portaria, dizendo que...
— É o Ben. Manda ele subir.
— Tem certeza?
— Claro, estou esperando por ele.
Atirei o fone de volta no gancho e corri para o quarto, procurando meus sapatos de salto que não usava há anos. Passei o batom e me olhei no espelho: Vestido preto, jaqueta de couro vermelha, meia-calça preta, sapatos pretos.
Não! Eu definitivamente não era aquela pessoa!
Por fim optei por algo mais Lissie: Calças jeans, botas estilo coturno e uma blusa de bolinhas com gola Peter Pan. Coisas que a convivência com a Clarice me trouxera.
Eu não costumava ser o tipo de pessoa que ligava para a opinião alheia, mas aquela ocasião pedia cuidado. Primeiro porque eu nunca tinha namorado alguém a ponto de conhecer a família, ou ser apresentada como namorada e não como "a amiga-da-fulana", como tinha acontecido quando namorei uma garota. Não fazia ideia do que falar ou do que não falar naquela situação. Também não sabia como agir, o tipo de piada que eu deveria fazer ou se era melhor não fazer piada nenhuma.
Ben tinha essa desconfortável mania de fazer mistério quanto à sua família e isso só atrapalhava as coisas. Ele dizia que eu tinha que ver com meus próprios olhos, que qualquer coisa que ele dissesse atrapalharia minhas impressões. Na verdade, ele achava engraçado me ver nervosa. "Relaxa, eles são legais! ", ele dizia, com aquele olhar sádico.
Em segundo lugar, eu era imigrante. Uma imigrante ilegal, o que fazia algumas pessoas daquele país torcerem o nariz para mim.
Claro que o plano inicial tinha sido ficar apenas seis meses nos Estados Unidos, aperfeiçoar o inglês e conseguir juntar uma boa grana para comprar um apartamento quando voltasse para o Brasil, mas só Clarice conseguira ter sucesso nessa parte e em muitas outras. Ela já tinha cidadania, graças à sua mãe, mas também tinha sido contratada por uma empresa de decorações, o que a deixava em uma situação mais do que ótima.
Claro que tudo isso a ajudava bastante, mas o meu fracasso maior se devia a minha dificuldade inata em ter alguma disciplina para seguir planos sem desistir a meio caminho.
Desta forma, ali estava eu, sem curso de inglês, com o visto vencido há tempos, servindo mesas e lavando privadas seis dias da semana, das oito às dezoito, em um fast food de uma família mexicana que aceitou me dar um emprego sem fazer perguntas.
Mas as coisas estavam melhores, de certa forma. Eu estava feliz, apesar de tudo. Claro que naquele momento em especial eu nem desconfiava que essa felicidade toda estaria ameaçada. Em menos de uma hora, para ser mais exata.
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