Inverno parte I

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Eu odeio chuva. Mais do que tudo nesse mundo. Mas chovia em exagero no inverno. O som já era ensurdecedor e as pessoas agora costumavam falar gritando para se ouvirem. Desci meu guarda chuva do banco do carona e caminhei pela calçada encharcada até a aba do hotel. Muitos devem achar estranho alguém morar em um hotel, mas considerando o fato de que eu era o principal responsável e chefe daquele lugar, eu me via bem habitando no trabalho. Ter uma casa para chamar de lar já não era um objetivo que eu visava alcançar. Só de pensar em ter um jardim com mato crescendo o tempo inteiro, uma área aberta para ter que cuidar e limpar, uma casa grande para morar sozinho, nada disso me agradava. A palavra lar não estava no meu dicionário há muitos anos, mas eu até que gostava do meu quarto de hotel no 5º andar do prédio mais movimentado daquela rua. Não era um lar, mas era o meu cantinho secreto longe das pessoas. Meu hotel era como qualquer hotel que se encontra nos bairros finos das cidades grandes, era consideravelmente grande, largo, muito iluminado, com piso cintilante e paredes bem acabadas a gesso, texturas leves nos cantos e lustres tamanho médio. A maior parte da iluminação do saguão de entrada se dava por luzes embutidas no teto de gesso de quase 4 metros de altura, os lustres eram apenas para agradar aos olhos dos clientes da alta classe que passavam por lá.

Meu quarto ficava em um corredor pequeno inicialmente utilizado para saída de emergência no 5º andar, logo não muito visitado pelos clientes, um quarto razoavelmente pequeno se comparar com as nossas suítes da alta cobertura. Possuía uma sala de estar, dois quartos com banheiro e uma cozinha média nunca utilizada por mim. Um espaço propício para morar um homem solteiro de 30 anos, já que eu tinha minha sala de trabalho separada no térreo do hotel. Eu optava por descer todos os dias os 5 lances de escada, já que elevadores não são muito agradáveis. Aos 9 anos resolvi vir a passeio visitar meus tios empresários na cidade e acabei por vivenciar experiências não muito agradáveis em elevadores de apartamentos. A descida e a subida diária fazia bem a minha saúde, já que eu não costumava me exercitar. Todos os dias perto das 8h da manhã eu fazia minha primeira descida em direção á recepção, lá deixava minhas ordens para as funcionárias e depois me enfiava na minha pequena sala de trabalho. Meu almoço era feito lá mesmo, já que eu deixava um mini freezer ao lado da minha mesa. Raramente saía para comer em algum restaurante de elite ao redor, mas jamais comia no restaurante do meu hotel já que não era do meu feitio dar as caras para as funcionárias da cozinha. Elas costumavam me encarar por horas até se sentirem confortáveis a proferir alguma palavra em minha direção, os olhares me incomodavam até eu me sentir um completo estranho e esquisitão então resolvi parar de visitar o andar onde servem a comida. Meu expediente termina por volta das 18h da tarde, é quando retorno ao meu quarto e por la fico tentando me entreter. Algumas noites maratono alguma série, em outras jogo videogames, quando dá na telha leio algum livro ou simplesmente me escoro no sofá até adormecer. Minha rotina não costuma mudar e de certa forma não me enjoo dela, já que faço há vários anos.

Aos fins de semana costumo convidar meu amigo Siwon para passar as horas, damos curtas voltas pelo bairro e retornamos ao meu cafofo para comer algo comprado de fora assistindo filmes. Siwon tinha o costume desprezível de adormecer no meu sofá, me deixando muito desconfortável em ter que providenciar a ele travesseiro, cobertas, e o mais difícil, hospitalidade pela manhã.

Siwon tinha esse jeito esquisitão muito parecido com o meu. Costumávamos marcar compromisso e já fazíamos nossa aposta de quem cancelaria primeiro antes de chegar o dia fatídico. Em partes ele era assim pois vivenciou muitos términos e preferia ficar sozinho em alguns momentos. Dependendo de como acordávamos no dia, com um bom humor ou desejando a morte, ligávamos um para o outro dizendo poucas palavras como "não tô no clima" ou "deixa pra próxima". Ao ouvir isso, já entendiamos que ou ele estava em um péssimo dia, ou eu estava... Sendo eu... Desejando subitamente ficar no meu canto, no meu conforto, envolto na minha própria companhia. Siwon me conhecia muito bem e respeitava meu estilo diferente de vida. Quando eu ligava para pedir sua visita ele sempre chegava com um sorriso dizendo "quando você diz que me quer perto é porque realmente quer estar comigo, então é um prazer vir". Ele costumava dizer que eu era como um gato de estimação: sempre individualistas e reservados, porém quando sentam no nosso colo ou se aproximam de nós sabemos que realmente querem nossa companhia e nos sentimos amados. Siwon em partes se sentia assim comigo a cada dia que eu pedia sua companhia. E eu me sentia em partes aliviado quando desejava ficar na minha e ele ligava dizendo que tudo bem não nos vermos tão seguido. Eu realmente tinha um bom amigo que combinava com meu temperamento, não éramos de melosidade ou de dizer que nos amávamos mas se existia alguém no mundo que eu amava, esse alguém era unicamente ele. Claro que nem tudo é flores, Siwon também possuía características totalmente contrárias a alguns costumes meus. Ele é falador, fala pelos cotovelos, gosta de contar do dia e de suas experiências passadas. Eu posso afirmar com toda certeza que sei absolutamente tudo sobre a vida do meu amigo, tanto sobre suas ex namoradas, como sobre seus sucessos no seu emprego de Agente Social. Claro, ele fazia questão de contar tudo. Ao contrário de mim, que prezo por um silêncio confortável e uma palavra curta. Mas mesmo com nossas diferenças, ele sempre entendia minhas meias palavras.

Em dias de chuva eu sempre pedia sua companhia e quando não podia ter, costumava deitar minha cabeça em um travesseiro apoiado no pilar do balcão de centro da minha cozinha, lá eu tinha a visão da TV na sala á minha esquerda e podia ao mesmo tempo monitorar o cair da chuva pela janela da cozinha á minha direita. Noites de chuva me deixavam apreensivo em estar sozinho, o som alto das gotas batendo contra o vidro da janela do meu quarto e o vento forte movendo as cortinas de lugar e abrindo pequenas frestas de luz externa me pareciam fantasmas ou vozes do além assoviando em meu ouvido, as entradas de luz hora ou outra formavam imagens sem sentido na parede em frente á minha cama e algumas vezes certas imagens assumiam forma e me lembravam coisas que queria esquecer. Os sons do vento em conjunto com a força da chuva se misturavam e quando eu menos esperava me pareciam vozes conhecidas do passado que me deixavam sem chão. Eu tinha a companhia que eu menos queria ter, a companhia do medo, me trazendo a tona o meu atual estado de completa solidão.

Ao fechar meu guarda-chuva debaixo do céu escurecido e sem graça da minha cidade, sacudir os ombros do meu sobre-tudo e adentrar enfim no grande saguão do hotel Lee, me via mais uma vez ao aguardo desses momentos. Essa seria mais uma noite de terror ao lado das assombrações, minhas fiéis companheiras em noites de chuva.

Into the WoodsOnde histórias criam vida. Descubra agora