Prefácio

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Já era tarde quando bateram na porta e eu me encontrava a três passos do fogão de seis bocas novo em folha que minha mãe tanto adora. Fazia minha comida preferida, bife à parmegiana com salada de rúcula, pois estava sozinho em casa. Minha casa não era exagerada, mas demonstrava tamanha fortuna que meu sobrenome carregava. Morávamos em um bairro não muito movimentado, simples o suficiente para conhecermos nossos vizinhos da direita. Porém dentre todas as moradias daquela rua, minha casa era sem dúvida a mais exuberante, com seus três andares de estrutura colonial desenhada pelos melhores arquitetos do ano, um quintal grande o suficiente para transformá-lo em uma praça pública e claro, minha própria casa na árvore ao fundo do jardim. Nossa cozinha era a peça menos sofisticada e a que eu mais me deliciava em utilizar.

Naquela noite cozinhando aos poucos meu jantar eu me dispersava com o movimento da colher na panela ao ouvir a campainha frenética vindo da sala de estar. Desliguei o fogão e limpei sem jeito minhas mãos no guardanapo mais próximo para me dirigir até lá. A cada passo meu, podia ouvir a campainha soando duas ou mais vezes como uma música agitada e sem nexo. Toquei a fechadura da porta principal e involuntariamente o gelo do metal novo em folha percorreu pelos meus dedos até minha nuca, arrepiando meu corpo por inteiro. Meu coração batia com pressa e minha boca seca me impedia de engolir o nada. Aos poucos estava cercado pela atmosfera desconfortável do medo crescente, e sem saber o motivo, abri a porta com os olhos no chão. Algo certamente estava errado.

Ainda com os olhos fixos no vazio da rua escura, pude focar em um par de sapatos pretos reluzentes parados no batente da porta. Subi o olhar trêmulo pouco pouco até atingir seu ponto máximo, um rosto. Estava em frente à minha casa um senhor bem apresentado de uns 50 anos, usando um terno de risca cinza desabotoado e gravata preta, combinando com a calça. Ele carregava uma pasta branca na mão esquerda e me dirigiu o olhar com olheiras visíveis e certas rugas surgindo nos cantos. Ao ouvir o senhor dizer meu nome, a sensação de desgosto e inquietude crescia e tudo que eu desejava era fechar minha porta e fingir que nunca tinha ouvido campainha alguma. Sua voz era mais incômoda que o soar daquele sino irritante anteriormente. Era arrastada e grave, levemente rouca mas muito intimidante. Eu, beirando meus 18 anos, não podia imaginar o que um senhor de idade iria querer comigo tarde da noite. Lembrava dos meus dias de criança quando ouvíamos avisos dos adultos para não abrir a porta para estranhos e ali estava eu vulnerável a um qualquer. Aos poucos que as palavras saíam daqueles lábios finos e brancos, meu rosto adormecia e minhas mãos suavam frio.

Foi como um rio de águas geladas seguido de um fogo impetuoso crescendo em mim ao mesmo tempo, meus olhos marejados e pernas beirando ao colapso não me permitiam me mover, eu fui o último a saber do acontecido. Parado ali naquela noite fria e ventosa eu avistava o início de um inverno trazendo seus primeiros pingos de uma chuva gélida enquanto recebia a notícia do trágico acidente de avião envolvendo meus pais. Naquele mesmo dia, poucas horas atrás, minha mãe afastava meus fios castanho amarelados e beijava minha testa me dizendo para ficar bem, meu pai me deixava o cartão de crédito ordenando que eu comesse em algum lugar, me davam ordens de cuidar a casa e alimentar o cachorro frequentemente. Há um bocado de horas atrás eu guiava as malas dos meus pais até aquele mesmo batente, ajudava-os a guardar os pertences no porta-malas do carro e acenava com pressa para a imagem distante dos dois se afastando pela avenida larga numa tarde de pouco sol. Eu devo ter reclamado tanto de ter que ajudar a organizar as malas sendo que a viagem era deles, eu devo ter feito caretas para minha mãe enquanto ela me abraçava freneticamente, eu devo ter dito para não exagerar enquanto diziam que era perigoso e que eu deveria me cuidar. Meus pais, que tanto me protegeram e ansiavam para ver meu crescimento, meu ingresso na faculdade, minha formatura, minha primeira namorada, os pequenos netos correndo pela casa, aqueles que desejavam acima de todos pela minha vida, agora não tinham mais as suas. E perdendo as suas, perdiam também a minha. Perdiam tudo que ansiavam ter. Aos poucos a chuva caía feroz e trazia consigo a infelicidade de uma tremenda desventura enquanto minhas lágrimas acompanhavam seu ritmo frenético de queda constante.

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