Inverno parte III

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Siwon chegou por volta das 3 da tarde daquele sábado. Trouxe consigo uma marmita para vigem com vários tipos de comida, pois não tinha conseguido almoçar ainda. Há alguns anos atrás eu tinha disponibilizado ao meu amigo a chave do meu apartamento, mas como em muitas manhãs eu precisava acordar com alguém dormindo no meu sofá e ver minha sala totalmente bagunçada, esse privilégio não estava mais disponível. Ao invés de adentrar sozinho, tínhamos um sinal de chegada. Ele tocava três vezes a campainha em um ritmo único nosso, assim eu saberia que era ele e não precisaria recepcionar pessoas indesejadas. Ao ouvir o toque de três campainhas, levantei em um salto para abrir porta. Pela primeira vez eu tinha muito a contar. Siwon sabia pouco sobre mim. Sabia que eu tinha nascido em berço de ouro, que morei em Seocho, um bairro mais calmo e familiar de Gangnam quando criança, e que me mudei para a grande Seul aos 24 anos para começar a administrar os negócios da família. Conheci Siwon em torno desta idade, era um recém chegado na cidade e nos esbarramos em uma cafeteria pouco movimentada. Ele me seguiu para entregar a carteira que eu havia esquecido encima do caixa e já aproveitamos para tomar outro café juntos no mesmo dia. Talvez aquele sábado fosse a primeira vez que Siwon ouviria detalhes mais aprofundados sobre mim que eu ainda me sentia desconfortável em adentrar, porém não conseguia lidar com tudo sozinho naquele momento e precisaria de sua ajuda. Quando abri a porta meu amigo adentrou o recinto com um sorriso no rosto e sua típica paz no olhar.

ー Será que você já almoçou? Tenho certeza que não! Vamos comer! Acabei de sair do meu turno.ー Siwon se dirigiu animado até a mesa de 4 lugares intacta da minha cozinha carregando sua marmita.

ー Não estou com fome, Obrigado. Tem pratos no armário de cima.

ー Se você não vai comer eu como direto do pote mesmo! ー Respondeu caçando um garfo da gaveta se alojando em pé no balcão de centro.

ー Pelo jeito já se sente em casa! ー Comentei sorrindo. Nos raros momentos de conversa que tínhamos, Siwon conseguia deixar meu apartamento com cara de lar.

ー Me sinto mais em casa do que você!

ー Não deixa de ser verdade...

ー E aí, o que me conta? ー Comentou com a voz abafada entre mastigadas.

ー Nada demais.
Queria simplesmente jogar tudo nele mas tinha medo de Siwon se assustar ao me ver tagarelando, já que eu não falava mais de cinco palavras por minuto com ele normalmente. Certamente ele estranharia e ser tratado como estranho ou doente pelo único ser humano que me restava de companhia não estava nos meus planos. Tinha certeza que ele me mandaria um SMS por dia perguntando se eu estava doido ou não e iria transformar tudo em um grande drama.

ー Como sempre, nada demais. ー Pude ouvir sua risada abafada ecoando pela cozinha vazia.

ー Bom, aconteceram algumas coisas estranhas hoje. Mas nada demais.

ー Colocaram panfleto embaixo da porta de novo? Eu te disse que é normal fazerem isso! ー Siwon respondeu brincando sobre histórias passadas que tínhamos um com o outro.

ー Na verdade ainda acho isso estranho... Mas não. Hoje de manhã meu vizinho me trouxe uma encomenda. ー Quase não conseguia me conter para contar tudo que estava pensando depois de depositar a carta marfim ao lado da marmita de Siwon. Tudo que eu queria era ouvir seu pensamento a respeito da situação, precisava que alguém fora da minha cabeça me dissesse que era tudo perfeitamente normal.

ー O que exatamente é isto? Uma conta para pagar? ー Siwon respondeu irônico. ー Lee Kangheon? Quem é esse? Seu vizinho não se chama Kim?

ー Na verdade esse é meu pai.

ー OMO, seu vizinho é o seu pai? ー Ele arregalou os olhos e bateu o garfo no balcão antes de esboçar um sorriso vencedor.

ー Eu não vou nem responder. ー Disse forçando um sorriso. Nós não compartilhavamos o mesmo tipo de humor mas Siwon conseguia me animar, quando não me estressava.

ー Foi mal, só quebrando o clima. Você parece tenso. Vejamos... ー Siwon abriu a carta e começou a ler mentalmente enquanto eu seguia seu movimento dos olhos apreensivo aguardando chegar na última linha. Após alguns minutos encontrei com seu olhar de indagação. ー Então... Seu pai te mandou isso? Seu pai mesmo? ー Ele arqueou a sobrancelha e me deixou desconfortável.

ー Provavelmente alguém que conhecia ele ficou encarregado disso e me enviou agora, como meu pai morto me enviaria algo? ー Respondi irritado. Essa não era a reação que eu queria, eu esperava ao menos um "Que loucura! Impossível!" carregado de ironia e infantilidade como ele sempre fazia. Preferia levar as coisas ao humor do que à seriedade e quietude, não queria me preocupar tanto. E minha cozinha estava quieta demais nos segundos que se sucederam.

ー Bom... A princípio parece que seu pai tinha planos melhores pra você hein, pensando na sua futura "família" que ainda não existe ー Ele riu e me senti fisgado pelo incômodo de perceber a verdade. Eu não tinha colhido nada de bom até agora e meu pai certamente não se agradaria disso, mas ele não estava mais aqui. Eu era responsável por mim agora e aparentemente estava tudo bem. Os negócios iam bem, eu tinha um único amigo porém verdadeiro, tinha dinheiro e um lugar pra morar. Tinha com o que me ocupar. Só restava esperar o tempo passar assim mesmo até a velhice e depois o fim. Siwon me acordou dos pensamentos pigarreando alto agora da sala. ー E você está bem após isso? Você vai?

ー Acho que estou. Vou onde?

ー Nesta tal Casa de Campo. Já conhecia esse lugar?

ー Meus funcionários que trabalhavam para ele já tinham me falado disso. Eles me ajudam a administrar as despesas da família então eu pago todo mês manutenção, luz, água, impostos e alguns empregados que cuidam do lugar como um porteiro e tudo mais. Parece que tem alguém responsável por manter o lugar organizado por lá. Não sei muito deles, nem sobre a casa. Apenas mais uma coisa que meu pai escondia de nós.

ー Caramba, vocês são ricos mesmo. Por que seu pai te mandaria pra lá em uma carta escrita há tantos anos atrás?

ー Não tenho ideia.

ー Acho que deveria ir. Se divertir um pouco e mudar os ares, você só fica nesse prédio velho. Já pensou poder correr pelo mato? ー Siwon respondia apressado enquanto arrumava sua pasta para voltar ao trabalho.

ー Meu hotel não é velho, é rústico. E não pretendo tocar em mato tão cedo, só quando me enterrarem. Estou guardando a surpresa pro final.

ー Cara não diz isso, natureza é tudo de bom. Faço trabalho social em umas famílias carentes do interior, eles são muito felizes e receptivos. Falando nisso olha a hora!

ー Trabalhar sábado é pros fortes mesmo. ー Respondi sem graça.

ー Alguém de nós tem que trabalhar  de verdade né! Pensa nisso aí cara, você não tira férias há anos. Bem que eu queria umas também. ー Choramingou enquanto saía pela porta da frente e me acenava já do corredor.

ー Até mais.

Novamente sozinho, pude lembrar alguns detalhes sobre a tal casa. Ficava há 190Km da capital onde eu morava, escondida em uma área florestal extensa. Tantas vezes pensei em vende-la para alguém mas nunca tive falta de dinheiro então fui só mantendo para caso algum dia precisasse de mais quantias. Não entendia o porquê de meu pai ter uma casa de campo no seu nome e nunca ter nos contado. Poderíamos ter visitado tantas vezes. Depois que ele morreu a casa passou para o meu nome, mas nunca me atraiu os olhos. O que eu faria lá? Já me sentia sozinho na cidade grande, por qual motivo iria para uma floresta? Certamente era uma casa fina, mas como isso poderia me ajudar? Ao mesmo tempo que a dúvida ganhava espaço, aflorava em mim a curiosidade e o desejo de entender quem me enviara de verdade a caixa e o porquê. Por poucos segundos me senti novamente com 13 anos querendo desvendar os mistérios que me apareciam à porta.

ー O que você quer de mim pai?

Senti novamente o vazio que meu apartamento abrigava quando soltei minhas palavras vagas ao vento e esperei. Esperei pela noite, pelo domingo, pela segunda. Esperei pelo que sempre espero aos fins de semana. Espero pelo começo do ciclo novamente. O começo da minha rotina que se repetia há anos. Pude ouvir os pingos da chuva fraca de fim de tarde se iniciando do lado de fora. Ao caminhar até a sacada, me permiti colocar a mão direita ao céu para sentir os pingos largos enquanto esperava pelo pior. Tantas coisas ruins vêm a nós como a chuva, tão inesperada e gélida, chega sem avisar e nos faz correr. A chuva nunca me trouxe coisa boa, e nunca iria trazer.

Noites de chuva, noites de mortos.

Into the WoodsOnde histórias criam vida. Descubra agora