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— Doutor Henrique, você parece diferentes nestes últimos dias — falou Alice, a enfermeira que sempre estava em meus plantões. Ela era uma senhora esguia de cabelos grisalhos e um sorriso gentil no rosto.

Uma semana se passou desde que eu vira Nina e naquela manhã de sábado eu estava encerrando o plantão da noite anterior O comentário dela aguçou minha curiosidade.

— Diferente como?

— Parece mais feliz, mais leve.

Alice me conhecia há bons anos, desde minha residência naquele hospital com meu tutor na época, Doutor João. Ela sabia pelo que eu havia passado com Luce, e em como me deixei cair nos meses seguintes. Ela também a conhecia.

— Não tenho feito nada de diferente, isso eu garanto — paramos em frente a recepção da UTI e entreguei algumas pranchetas para a recepcionista.

— Você tem passado mais tempo com seu primo, não tem?

Ah, Luís. Bom, não foi exatamente nele que eu pensei naquele momento, mas sim na ruiva de olhos verdes e língua afiada. Voltamos a andar em direção a minha sala de atendimento. Iríamos pegar minha pasta de trabalho, bater o ponto e irmos embora. Geralmente caminhávamos juntos até o estacionamento.

— Ele tem me enchido bastante ultimamente, fazer o que se ele é família, não é?

— E você conheceu mais alguém? — Sondou como uma mãe preocupada faria com seu filho.

— Ahn...Não. — Minha demora em responder me denunciou. Alice sorriu como se soubesse dos mistérios do mundo.

— Que bom, continue assim.

— Mas eu não conheci — tentei me justificar e apagar aquele assunto da nossa conversa. Minha voz acabou saindo mais fina, como acontecia quando eu tentava contar alguma mentira. Alice sabia disso também.

— Tá bom, eu não disse nada, acredito em você — respondeu em um tom irônico que confirmava exatamente o contrário: ela não acreditava nem um pouco em mim. — Voltando a falar do seu primo, vai aguentar ajudá-lo hoje ainda?

Parei no corredor.

— Ah, que droga.

— Esqueceu, não é?

— Quem resolve pintar a casa em um sábado de manhã?

— Quem comprou um imóvel, eu acho — respondeu minha pergunta retórica. — E quem não trabalha de madrugada.

Luís estava terminando a construção de sua casa e pediu ajuda para pintar as paredes da sala e da cozinha. Meu tio e meu pai já eram jovens senhores e mais nenhum colega dele era tão próximo quanto eu, sobrando eu e apenas eu para ajudá-lo naquilo. "Quero ter a sensação de ter colocado a mão na massa em algum momento" disse ele quando perguntei por que não contratava um pintor.

E foi assim, que cerca de uma hora depois e mais meio copo de cafeína eu estava na casa dele abrindo uma lata de tinta branca.

— Não pode dizer que eu não te amo depois do que eu estou fazendo — falei passando o primeiro rolo de tinta na parede.

— Não é como se você não estivesse acostumado a ficar mais horas acordado, você só trocou o bisturi por um pincel.

— Uma sutil diferença, sem dúvida.

Ele fez menção de jogar tinta em mim e parou no meio do caminho.

— Eu só não jogo um pouco de tinta em você porque isso aqui foi caro.

— Vamos terminar isso logo e falar menos.

Quatro horas depois a sala estava com uma cara nova. Colocamos os pincéis sujos em cima do papelão e paramos para observar a obra prima. Não estava perfeito, como um pintor de verdade teria feito, mas meu primo parecia orgulhoso do próprio trabalho. Aquele momento me jogou para anos atrás, comigo e Luce fazendo a mesma coisa em nossa casa, mas com a parede azul. Cocei os olhos, querendo sumir com a ardência que tinha surgido.

Idas e vindas de amor - O Encontro (Livro I) [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora