Fragilidades

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Agosto de 2005

Meu relógio marca 10h49. O presidente Lula pediu minha presença em seu gabinete às 11h30 para discutir meus planos para o futuro próximo, mas estar um pouco adiantado nunca faz mal; principalmente quando é minha primeira reunião com ele e estou muito animado para apresentar minhas ideias. Trago alguns documentos para analisar enquanto espero, sem perder tempo.

Logo em frente ao gabinete do presidente, há um espaçoso espaço para espera, já que o homem é muito ocupado e frequentemente muitas pessoas querem falar com ele ao mesmo tempo. Me dirijo para lá, já pensando no que posso apresentar.

Meu planejamento é interrompido, entretanto, quando vejo apenas mais uma pessoa esperando sua vez. Não qualquer pessoa. Sentado no canto de um dos enormes sofás pretos, com o paletó aberto e as pernas cruzadas, está o ministro Ciro Gomes.

- Bom dia. - Eu o cumprimento.

Ele não olha para mim, estando ocupado demais investido em... Nada.

- Bom dia. - Responde mesmo assim.

Ele não gosta de mim e eu já percebi isso. Não nos vemos muito, já que eu e ele trabalhamos em áreas totalmente diferentes. Mesmo assim, desde meu primeiro dia ele tem estado em minha mente. Talvez seja porque simplesmente não o entendo. Talvez seja porque ele chame a atenção de todos.

Resolvo sentar longe dele, pois tenho coisas a fazer e pela sua cara, ele não quer ser incomodado. Parece um pouco perturbado, até. Balança o pé e alonga o pescoço, por fim bufando com força.

Percebo que estou olhando mais do que devia quando ele fala comigo.

- Já que você está tão interessado em mim, vamos conversar. Preciso me distrair.

Me assusto um pouco.

- Tudo bem. - Me ajeito no lugar - Por que precisa se distrair?

- Que horas são?

- 10h52. - Respondo, levemente confuso.

- Olhe, fazem umas seis horas que não fumo. Acho que estou tendo uma crise de abstinência, mas tenho uma reunião com o presidente Lula daqui a alguns minutos e não posso fumar dentro de um prédio do governo.

Ele aponta para uma pequena placa ja parede que eu não tinha percebido quando entrei. Nela, lê-se 'Proibido Fumar'. Olhando para ela, Ciro sorri de canto e continua:

- Tenho quase certeza que colocaram esse troço aí por minha causa.

- Por que você não fumou um cigarro antes de entrar?

- Eu achava que conseguia ficar sem. Erro estúpido. Não fico tanto tempo acordado sem fumar desde que tinha 20 anos.

- Isso não me parece muito saudável.

Ele ri. É a primeira vez que o ouço rir, e a ironia que a risada dele contém me incomoda um pouco.

- Não é nada saudável, é verdade. É um hábito ruim, estou tentando diminuir. Você não tem nenhum hábito ruim?

- Acho que não. Nunca fumei, não uso drogas e não gosto muito de beber.

- Que bom garoto. - De novo, aquele sorriso que sempre chama minha atenção. - Todos temos nossas fragilidades, meu caro; pelo menos a minha não envolve roubar dos cofres públicos. Não posso dizer o mesmo de todos os meus companheiros de trabalho.

Em uma conversa com a ministra-chefe da Casa Civil, fui informado de que Ciro não estava satisfeito com o que acontecia dentro do governo e por isso despertava um pouco de desconfiança em alguns de seus pares, que temem uma espécie de traição. Mesmo assim, ele mantinha o posto de 'homem mais leal' aos olhos do presidente Lula.

- Bem, eu também não roubo nada dos cofres públicos.

- Todos têm suas fragilidades. - Ele repete, olhando para mim dessa vez. - Quem sabe em breve não descobrimos a sua?

Me arrepio com o comentário. Não foi bem em tom de ameaça, mas não me pareceu amigável. O olhar dele me deixa desconfortável.

Felizmente, ele logo sorri e recosta para trás no sofá, não mais olhando para mim.

Observo atentamente enquanto ele procura por algo nos bolsos internos de seu paletó. Vejo que ele pega um maço de cigarros e o segura em silêncio por um tempo.

Em seguida, por algum motivo, joga na minha direção. Consigo pegar antes que me atinja, mas logo a interrogação em minha face fica óbvia.

- Fica com eles. Joga fora, se quiser. Vai ser mais fácil ficar pelo menos até meio dia sem eles se eu não tiver nenhum no bolso.

Olho para ele, e então para o maço em minhas mãos. Uma caixinha dourada, com a palavra 'Charm' estampada na frente. Abro. Quase cheio; falta apenas um.

Torno a fechá-la e coloco no bolso do meu paletó.

- Vou jogar fora assim que puder.

- Obrigado, Fernando.

Fico um pouco impressionado por ele sequer saber o meu nome. Queria que ele o falasse mais vezes.

No que estou pensando?

- Senhor ministro, o presidente está pronto para recebê-lo. - O secretário pessoal de Lula aparece na porta, indicando a Ciro que pode entrar.

Ele se levanta de onde está e ajeita o terno. Antes de entrar, anda até mim e estende a mão para que eu a aperte. Não hesito.

- Você é um cabra bacana. Nos falamos depois.

- Obrigado, Ciro.

E então, o tal ministro entra na sala do presidente.

Sorrio quando me vejo sozinho. Então sou um 'cabra bacana'? Me parece um elogio bem sólido.

A Raposa e o Cordeiro (Ciro x Haddad)Onde histórias criam vida. Descubra agora