Onde estão os hóspedes?

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Claus

Estaciono a caminhonete ao lado do carro que só pode ser da sobrinha de Carmem. Até agora não entendi o que ela veio fazer aqui. Selina poderia escolher qualquer destino no mundo para tirar férias. Eu sei que Carmem gosta muito da sobrinha, mas há um bom tempo ela foi embora e, depois da fama, nunca mais a vimos, nem ela nos procurou, com exceção às raras vezes que as duas se falavam por telefone.
Desço e dou uma checada no veículo desconhecido. Não reconheço o modelo, mas pelo design diferente e o tipo das rodas, sei que é importado. Esse pessoal é cheio da grana, mesmo. Espero não termos problemas com isso. A vida aqui é simples e pacata, provavelmente muito diferente da badalação de Hollywood.
Perdi um bom tempo na loja dos Lopes consertando, pela quinta vez, a chaminé do forno deles. O casal de idosos, dono da única padaria da cidade, é o melhor comprador de queijo que temos e amigo de longa data de Carmem. Toda vez que Genaro e Marta precisam de consertos desse tipo, disponho-me a ajudar. Fiquei a tarde toda na padaria e, apesar de todo pão que comi lá, ainda estou faminto.
Caminho até a casa me preparando para encontrar a celebridade, uma sala cheia de malas e falatório geral, mas ao entrar não vejo ninguém. Vou direto para a cozinha, onde Isaura e Carmem lavam a louça na beira da pia em silêncio. Isaura enxagua e Carmem, ao seu lado, seca tudo com um pano. Observo a cena desconfiado. Esperava um tumulto maior ali, pela importância da sobrinha de Carmem.
- Boa noite. - cumprimento.
- Boa noite, querido. - Carmem responde.
- O que aconteceu, Claus? Está tão sujo de fuligem que até parece vindo de uma carvoaria. - Isaura zomba da minha aparência. Eu sei que estou sujo, não imaginava o quanto.
- Tive que consertar a chaminé dos Lopes mais uma vez.
- Se não fosse sua boa vontade em ajudar aqueles dois, acho que já teriam falido. São tantos problemas com as máquinas velhas da padaria que a única solução seria substitui-las. E haja dinheiro para isso!- Carmem alega.
- Nada que eu não possa ajudar. - justifico. - Onde estão os hóspedes? - mudo o assunto. - Vi o carro deles parado lá fora e achei que os encontraria aqui.
- Selina e Ortega estão em seus quartos. Chamei os dois à meia hora e não tive resposta. Acho que foram abatidos pelo cansaço da viagem.
- E o que eles falaram do lugar? Eles reclamaram de alguma coisa? - pergunto, curioso. Organizar o andar de cima deu muito trabalho, até porque Carmem queria tudo perfeito para Selina.
- Sim, eles gostaram muito. - ela se limita a responder.
- E só? Não fizeram nenhuma exigência ou pedido sem noção? - não me convenço com as poucas palavras.
- O que quer dizer com isso, filho?
- Já não sabe como ele é, dona Carmem? - Isaura começa - Lembra o dia em que chegamos aqui, esse menino todo desconfiado de nós? Enfrentava Pedro, amedrontava Aretha e Hugo. Até se acostumar conosco foram anos. Vai ver ele quer fazer o mesmo com a dona Selina e seu Ortega.
- Mas Selina não é uma estranha. E ele não teria coragem de fazer isso, teria? – a alegação de Carmem se transforma em questionamento direcionado a mim.
Elas não percebem quantos problemas podemos ter por isso. Os repórteres podem começar a invadir a propriedade e nosso trabalho atrasar. A ordenha e a fabricação de queijos serem prejudicados.
- Não foi bem assim, Isaura. E quanto à Selina, eu apenas não entendo o motivo dela vir para cá, assim, do nada. - justifico. - Pessoas famosas costumam ter exigências esquisitas como geladeira no quarto, comida importada e produtos higiênicos que não foram testados em animais, sei lá!- que era a minha cisma, eles pedirem e Carmem concordar, sendo que nossa finança não inclui esses luxos.
- Deixe de ser bobo, Claus. Você esqueceu que Selina é da família e foi criada aqui no Brasil? Ela sabe que a vida na Solares é simples. Se não exigiu nada antes, quando nos avisou que viria para cá, não seria agora que faria isso.
- Sei não. Pessoas famosas têm costumes esquisitos, você nunca ouviu falar? - questiono. 
- Pior que o Claus está certo, dona Carmem. - Isaura concorda. - Já vi um programa na televisão falando das coisas esquisitas que um artista pede num camarim. Tem cada absurdo!
- Querem parar com isso vocês dois? - Carmem ralha. - Minha sobrinha não é como essas atrizes excêntricas. A Selina é um doce de pessoa e não tem esse estrelismo todo.
Meu estômago ronca com o cheiro gostoso vindo das panelas. Preciso de um banho e uma boa comida, não de uma conversa fiada na cozinha. Não adianta discutir com Carmem sobre Selina. Amanhã terei tempo de sobra para sondar qual o propósito dela e do seu agente aqui na Solares.
- Tudo bem. Meu dia foi longo e, se não se incomodam, vou levar a comida. Janto depois que tomar um banho.  
Despeço-me de todos e volto andando para casa, que fica do outro lado do rio. Só se chega lá a pé, por isso o carro fica estacionado na porta de Carmem. Com a comida em uma mão e a lanterna na outra, sigo pelo caminho de terra até a mata fechada. A estrada estreita se embrenha por ela muitos metros até a margem do rio. De lá, bastar andar mais uns metros pela margem e atravessar a ponte de madeira e corrimão até meu canto particular.
Assim que completei idade suficiente para morar só, mudei-me da Solares. Construí um lugar do outro lado do rio, para me isolar. A casa é simples, com quarto, sala, cozinha e banheiro. No início, Carmem não foi a favor da ideia. Disse que a sede tinha espaço suficiente para nós dois, mas, no fundo, ela sabia que eu não cederia na decisão. Ser solteiro implicava em privacidade. Não dava para ficar levando garotas para casa com Carmem lá.
Além disso, carrego fantasmas do passado que julgo serem meu carma, não dela. As minhas noites de sono não são exatamente tranquilas. Carmem já presenciou incontáveis crises e eu não quero que continue sofrendo por algo que não está sob seu controle. Nem ela e nem remédio algum me curaram dos traumas de um passado sombrio e violento.
Tenho muita consideração pela mulher que me adotou, apesar de nunca a chamar de mãe. Segundo o homem que dizia ser meu pai, mãe é uma palavra que não nasci para falar. E quando ainda estava vivo, ele fazia questão de me lembrar disso todos os dias. A cada castigo que me submetia ele jogava na minha cara que eu havia matado a minha mãe. Nunca me disse exatamente como. Acho que foi no meu parto. Não tenho nenhuma memória do seu rosto desde pequeno.
Em casa, livre de todo caos do dia, após banho e comida, descanso na cama. Os pensamentos recaem na fazenda e em uma certa visita que pode me dar muita dor de cabeça: Selina. Quando cheguei à fazenda, sua partida já estava marcada para o meio do ano. Nosso contato na infância foi breve e desde que ela foi embora não nos vimos mais. Carmem que sempre me trazia notícias, mostrava-me fotos suas e até me obrigava a assistir alguns de seus filmes com ela. Minha mãe adotiva acompanhou cada passo de Selina em busca da fama e, de quebra, eu também.
Só que o tempo passa e as pessoas mudam. Eu não sabia o que esperar de uma pessoa com uma vida tão diferente da minha. Estou acostumado com a simplicidade da Solares, o trabalho da fazenda e as pessoas daqui. Não sei como me comportar diante de uma garota que viveu entre holofotes e glamour. Esse era o meu desassossego.

Eita que o nosso homem chegou com a macaca. Pelo visto, Claus não vai dar moleza para Selina. Já quero esse encontro!

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