What's left?

524 52 22
                                    

  Mais uma garrafa de whisky era aberta, e quase no mesmo instante, o líquido marrom rasgava a garganta do rapaz loiro refletido no espelho. Um grande gole. A bebida descia queimando, nada que já não estivesse acostumado.

  O olhar esverdeado não tinha o mesmo brilho há anos. A pele estava sempre maculada por alguma cicatriz ou marca de batalha. Seus lábios há tempos não esboçavam um sorriso sincero.

  O que acontecera com aquele menino inocente e cheio de sonhos que um dia fora? Ou será que um dia se quer fora isso? Aos 4 anos saiu de sua casa em chamas com seu irmão no colo, enquanto sua mãe era morta por um demônio. A partir dali sua missão era uma só: cuidar do Sam. Não teve uma infância como das outras crianças. Mesmo com a pouca idade, teve que aprender a ser adulto. Não importava seus sonhos, não importava suas vontades, o que importava era manter o irmão seguro enquanto seu pai caçava. Dean fez isso sempre, sempre que pode. Mas Sam cresceu e fez suas escolhas. Queria protege-lo do mundo, mas Sam não queria essa proteção. Sam deixou-se levar, deixou-se enganar, virou-se contra o irmão e Dean não pode impedi-lo de consumir doses e mais doses daquele veneno que pouco a pouco tirava sua humanidade. Assim como não pode impedi-lo de se juntar com um demônio e acidentalmente causar o começo do fim de tudo.
  Respirou fundo, aspirando o ar e soltando-o pela boca entre aberta. 

  Mais um longo gole.

  Dean ainda não se perdoava pela decisão do mais novo. Achava que não tinha feito o suficiente, que poderia ter impedido, que podia ter evitado.

  Era sempre igual. Coisas ruins aconteciam com as pessoas que ele amava e Dean nunca podia evitar. Assim como não pode evitar que sua mãe morresse naquele teto, assim como não pode evitar que John trocasse a alma por sua vida, não pode impedir que Bobby ficasse preso aquela maldita cadeira de rodas, assim como não pode evitar que o irmão se perdesse, assim como não poderia evitar que tudo aquilo acontecesse.

  O mundo estava por um fio. De novo. A única esperança que lhes restava havia sido arrancada por aquele homem-anjo ou seja lá o que fosse, Joshua, no céu. Deus sabia de tudo, via cada desgraça que estava acontecendo, viu os anjos se unindo para tirar Lúcifer da jaula, viu todo o esforço que aqueles malditos humanos estavam fazendo para tentar salvar aquilo que Ele criou, viu e via tudo, porém não se importava. Como alguém, ou nessa caso, alguma coisa, conseguia fazer tanto pouco caso do sofrimento alheio?
 
Havia algo que Dean podia tentar. O arcanjo Michael estava o cercando, ou melhor, mandando seus anjos o cercarem. Ele era o escolhido. Assim como Lúcifer precisava de uma casca para poder andar pela terra, Michael também precisava. Mas não poderia simplesmente toma-lo, Dean precisava consentir. Por inúmeras vezes dissera não, mas agora o sim soava tentador. Aceitar que o arcanjo lhe possuísse era dizer adeus para sua vida. Mas que vida? Aquele ciclo repetitivo de merda atrás de merda? Onde seu destino era sempre o mesmo: ver as pessoas importantes para si partindo, cedo ou tarde, uma seguida da outra, e sempre tendo a chance de evitar e mesmo assim não fazendo nada. Valia a pena sacrificar o mundo pela vida de um desgraçado?
 
  Havia tomado sua decisão. Era a coisa certa a fazer, e nada ou ninguém poderia impedi-lo. Os poucos pertences que tinha haviam sido devidamente guardados numa pequena caixa de papelão que seria enviada para Bobby depois. Quando provavelmente ele já haveria deixado de existir.

  Deu um último gole, sorvendo quase todo o restante do líquido, colocando a garrafa de vidro em cima da cômoda de madeira gasta. Quando virou-se para pegar suas coisas e ir atrás de Michael, seus olhos encontraram a fígura a sua frente e um leve tremor percorreu seu corpo. Por que ele sempre tinha que aparecer assim do nada? E por que tão próximo? 
 
— Castiel. – Disse somente, entortando um sorriso pequeno.
 
O anjo não respondeu. Fitava friamente o caçador, sua face mais inexpressiva do que nunca. Dean começou a se sentir desconfortável com a intensidade com que o outro lhe olhava e deu um passo para o lado, afastando-se do olhar fixo de Castiel.

Contos do anjo e o caçadorOnde histórias criam vida. Descubra agora