Contos E Cores

Imagine O Sabor Da Cereja

Linda. Muito, muito linda.

Uma linda criatura, claramente enviada por anjos ao simplório mundo dos mortais, estava diante de mim.

Um ser tão belo com a mais perfeita das aparências não pode, de jeito nenhum, ser apenas uma mera mortal. De fato, é uma criatura divina e celestial que, por algum motivo ainda desconhecido pelos indignos humanos, resolveu fazer uma pequena parada neste mundo. Talvez para amansar o coração desta espécie que está sempre rodeada pelo mais terrível caos.

Os olhos analisavam os itens disponíveis em sua frente, tentando decidir qual deles iria satisfazê-la melhor. Mudando rapidamente de direção, moveram-se para cima e suas feições indicaram que, enfim, tinha encontrado aquilo que desejava entre as variadas opções que se dispunham pela extensa prateleira.

Esticou a mão o máximo que pôde e, ao perceber que apenas isso não era o suficiente para conseguir o que desejava, aumentou um pouco mais o tamanho ficando nas pontas de seus pés. Mas, para sua infelicidade, isto também não era o suficiente para conseguir alcançar o que queria.

Eu, por ser mais alto que ela, poderia lhe fazer o favor de me aproximar e alcançar o produto. Mas não foi o que fiz, pois isso acabaria com a visão incrível que eu tinha de seu corpo, algo que eu definitivamente não queria.

Poderia apreciar esta divindade por um tempo indeterminado. O corpo pequeno e curvilíneo, coberto por um vestidinho simples e amarelinho. Os pés pequenos cobertos pela sapatilha que combinava perfeitamente com o simples vestido. Os cabelos escuros e cacheados que caiam como cascatas em seu ombro. Os olhos claros que não tiravam a atenção do item que desejava. Aquela boquinha, aquela linda boquinha que roubou minha atenção por completo, coberta por um batom que a dava um ar sensual, a cor vermelho cereja que fazia um contraste com o seu rosto angelical. Não conseguia tirar os olhos daquela boquinha incrível.

Fui completamente aprisionado por aquela boquinha pequena e vermelha. Meus olhos captaram quando a linha de seus lábios se curvaram em um sorriso para um homem ao seu lado que tinha acabado de a socorrer e pegar para ela o que tanto queria.

Olhei para o produto em suas mãos que agora ela depositava em seu carrinho de compras.

Um macarrão instantâneo.

A imagem do alimento preparado apareceu em minha mente. Pensamentos da linda boca avermelhada sugando o macarrão que desaparecia enquanto ela sorria satisfeita com o sabor que se espalhava completamente lá dentro.

Os lábios se moveram formando uma palavra de agradecimento com uma doce voz melodiosa em direção ao homem.

Devia ser eu.

Eu quem devia estar tão próximo daquela boca de cereja recebendo os agradecimentos ao ajudá-la a pegar o instantâneo, mas estava ocupado demais reparando naqueles pedaços de cereja, imaginando sua boca grudada na minha, em algum canto sem ninguém. Seu batom tinha um gosto de cereja como a cor? O sabor deveria ser divino.

Andou em direção ao caixa para pagar as compras. Foi colocando os itens em cima do balcão enquanto a mulher atrás ia fazendo a leitura do código de cada produto comprado.

Completamente hipnotizado.

Eu estava hipnotizado desde o primeiro momento que a vi. Não conseguia prestar atenção em mais nada ao meu redor, queria apenas continuar olhando para a parte pintada de vermelho.

Ela sorriu novamente e começou a se dirigir para fora do estabelecimento.

Ela estava indo embora.

Não! Ela não podia me deixar!

Minhas pernas começaram a se dirigir em sua direção, enquanto ela empurrava o carrinho com todas as compras em sacolas. Ela estava longe, eu tinha que chamar por ela, eu tinha que d...

-Aonde pensa que vai? Seu turno ainda não acabou.

Uma mão em meu ombro me parou subitamente e eu tive que me virar em direção da voz.

-Volto em um segundo, eu juro!

Minha voz saiu rápida, talvez desesperada.

Voltei-me novamente para caminhar em direção a saída, mas não dei mais que três passos antes de me prender no lugar.

Ela não estava mais lá.

Ela tinha ido embora.

Ela tinha me deixado.

Eu sabia sim. Eu sabia que seria a última vez.

Eu nunca mais veria aqueles doces lábios cobertos por uma linda camada cor de cereja.