01. você é enferrujada

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Minha pele é clara e meu rosto é feito por sardas. Você provavelmente sabe o que são sardas, mas precisará ousar um pouco mais se quiser imaginar meu rosto como ele, de fato, é.

Eu gostaria de ser forte o suficiente para não começar assim. Para dizer que essas manchas não definem quem eu sou. Só que elas fazem parte de mim. Cada uma delas serve como areia, pedra, cimento e água na construção da minha personalidade.

E antes que você desista dessa garota fraca, saiba que essa não é a simples história de uma garota com o rosto manchado, ou sobre como acabei beijando o panaca do meu melhor amigo que me ajudou a entender sobre minha própria constelação. Esta é uma história com muitas cores. Ruivo, azul, negro, roxo... cinzas. Naquele verão, tudo o que aconteceu me ensinou que há tempo para espalhar e tempo para ajuntar. Da mesma forma com que as sardas percorrem minha face.

Não tenho uma introdução propriamente dita para te ensinar sobre quem eu sou. Houve vezes em que eu tentei contar a quantidade de pintas ruivas largadas em meu rosto. Mal posso discernir onde algumas acabam ou terminam. Elas se acumulam aos montes sobre o meu nariz, e se esparramam pelo restante do rosto chegando a tocar meus lábios, orelhas, pálpebras e até a pele por debaixo da sobrancelha.

Quando eu tinha treze anos, a Amanda, uma garota popular que pensava estar em uma escola americana, me parou no corredor protegida por uma gangue de outros populares. Com o sorriso carregado de escárnio, ela foi bastante indiscreta ao me perguntar:

— Ei, garota, você já se perguntou se esqueceram você na chuva?

Não respondi. Eu pretendia lembrá-la de não me chamar de "garota" outra vez, porque sabíamos o nome uma da outra. Mas passei segundos demais tentando adivinhar se aquela era mais uma das inúmeras piadas ridículas de colégio ou uma pergunta mais elaborada.

— É que parece que deixaram sua cara na chuva por três dias até ela enferrujar — foi o que ela falou. E tentou sorrir depois.

Um único soco calou a idiota para sempre. Ganhei expulsão no primeiro dia de aula. Minha mãe nunca soube o real motivo, embora desconfiasse. Mas, bem, eu já estava no primeiro ano do Ensino Médio, então dificilmente alguém entraria em contato com os meus pais.

Não vou dizer que sou do tipo que não leva desaforo para casa porque isso não existe. As pessoas abraçam seus desaforos e eles o perturbam como fantasmas durante o sono. Isso também serve para aquelas pessoas de aparência fria e insensível, como eu.

A verdade é que todos nós somos feitos de cicatrizes silenciadas que mais se parecem com os desaforos que engolimos. Narizes quebrados não consertam palavras que atingem. Cabeças erguidas melhoram a situação, mas não resolvem lá dentro.

Até mesmo os escudos mais bem construídos podem não resistir contra palavras e intenções deferidas com amargura e desprezo bem calculados.

Não gosto dessas coisas em meu rosto, mas talvez por estarem expostas, elas não funcionem como fraquezas em mim. O pior acontece quando a vida acaba revelando nossas fraquezas menos evidentes. Aí, as coisas podem ficar ruins. Para isso, não há colete à prova de balas que substitua lágrimas derramadas debaixo do chuveiro ligado.

Nina já nasceu enferrujadaOnde histórias criam vida. Descubra agora