Gostaria que me pai soubesse que eu passei para a faculdade de Física. Mas ele nunca vai saber disso porque nos três últimos anos, eu só pude vê-lo uma vez. O coitado estava espremido em um monte de tubos, no hospital. Ele tem uma doença arterial conhecida como cardiopatia isquêmica. E depois do último derrame, não existe nada pra ele além do coma. Talvez eu pudesse escrever uma carta.
Gosto de estar na faculdade. Gosto dos trabalhos, da liberdade que não havia no colégio, dos professores que não estão nem aí para a chamada. Gosto de me sentir uma CDF e dividir as cadeiras da turma com apenas outras cinco meninas.
O único problema das minhas amigas é o seguinte: meninos. Os de Física não interessam tanto, é claro. Elas ficam de olho nos caras de outros cursos durante boa parte do tempo. Não é que essas meninas frequentem as chopadas e festinhas assíduas. É só que elas não têm paixão pra falar de outra coisa além dos assuntos: faculdade e garotos. Que tal uma questão da vida, uma observação interessante, uma série da Netflix...?
Mesmo assim, pode-se dizer que eu ando com elas. Também ando com meninos, como sempre. E ando com o Caio. Quase como sempre. Não que ele não seja um menino. Ele é um meninão em vários sentidos. Grande e bobo. O Caio é meu vizinho literalmente, da casa do lado. Ele mora com os pais adotivos e também é filho único. Na verdade, compartilhamos muitas coisas em comum. E é realmente uma pena que ele não escute música dos anos 60, ou pelo menos, dos anos 80. Na verdade, ele não faz nenhum esforço pra sequer conhecer isso. Já larguei de mão.
Caio é o tipo de cara que faz você se sentir muito mais protegida do quando está só, embora eu não esteja nem aí para a proteção que ele pode me oferecer. Bastante alto e forte com músculos naturais, diferente daqueles trambolhos humanos artificiais de academia. A pele dele é da cor que eu adoraria ter: escura e sem traços de manchas. E o sorriso dele é bem branco. E com um traço perpétuo de travessura. Palhaço. Sem graça.
Caio se mudou pra cá quando tinha onze anos. Nós brincávamos juntos porque as filhas das amigas da minha mãe tinham nojo do meu rosto. Elas não diziam isso, mas nunca foi necessário falar.
— Ei, garoto! — uma versão minha com dez anos gritou por ele pela primeira vez.
Era um dia de sol. Karen e Roberta folheavam uma revista dando risadinhas no meu quintal. A revista era cheio de garotos denominados "colírios". E eu nem entendia o porquê dessa palavra. As mães dessas meninas gostavam de vê-las usando vestidos graciosos para disfarçá-las de boas moçoilas. A minha que não ousasse tentar isso!
— O que você quer? — perguntou ele, me olhando com a cara emburrada. Tentava empinar uma pipa absolutamente sem sucesso.
— Não seja burro. O vento está pro outro lado.
— E o que uma garota como você sabe sobre pipas? Eu vim da rua.
— Então você é adotado — concluí em bom som, me aproximando. Mesmo sendo recém-vizinho, não era difícil notar que os pais do garoto tinham a pele clara demais.
— Qual o problema? — quis saber ele, dando de ombros e voltando a correr puxando a linha.
— Ei, garoto! Garoto!!
— O que é? — gritava ele de volta, se afastando.
— Posso brincar com você?
— E por que uma garota como você ia querer brincar comigo?
— Cale a boca e deixa eu brincar!
E assim começou nossa amizade.
Caio sempre me julgou de maluca porque eu escolhi Física. Ele passou no vestibular para Engenharia Mecânica. Nossos horários são diferentes, mas na maioria das vezes, a gente ainda se espera para voltarmos juntos pra casa. De ônibus ou de bicicleta. Prefiro de bicicleta porque faz a gente parecer jovem.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Nina já nasceu enferrujada
Romance[PELO MENOS 1 CAPÍTULO NOVO TODA QUINTA E TERÇA] Um livro sobre desafios e descobertas. Com juventude e rock dos anos 60. Nina tem 19 anos e o rosto coberto por manchas. Estuda Física e detesta vestidos. Diz que não tem tempo para sair da rotina. No...