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Passei alguns instantes a conversar com D. Leocádia junto à mesa. O negociante sentara-se numa cadeira de palha à porta do terraço, onde regularmente todas as noites fumava seu charuto.

— Sr. Duarte! disse eu alteando a voz.

— Doutor!

— O senhor está lembrado do que se passou entre nós há três anos, logo depois do restabelecimento de D. Emília?

— A que respeito?...

— A respeito da maneira generosa por que o senhor quis recompensar os pequenos serviços que eu...

— Ah! lembro-me!...

— Pequenos serviços, doutor! acudiu D. Leocádia. Um irmão não faria por sua irmã o que o senhor fez por Mila.

— Fiz o meu dever, minha senhora, e nada mais; um simples dever de médico!

— Não! O senhor pode pensar como quiser; mas eu sei que lhe devo a vida de minha filha, doutor. Se não fosse o senhor...

— Que passou vinte e tantos dias, quase sem dormir, não pensando em outra coisa... Cuida que eu não vi o seu desespero quando Mila piorou? E até uma vez...

— Perdão, D. Leocádia! disse eu muito contrariado. A senhora compreende que não vim lembrar o que se passou há tanto tempo para provocar elogios, que não mereço, e que, desculpe, me desagradam sempre.

— É tal e qual: sobre isto não é capaz de ceder. Não o contrarie, mana.

— Está bem, doutor, não se zangue; já me calo — respondeu a senhora com bondade.

— Repito — continuei — , não fiz mais do que a minha obrigação; e, quando recusei a recompensa generosa que o Sr. Duarte me ofereceu, tive para isso uma razão. Não sei se lhe disse?

— Creio que sim; mas não me recordo bem.

— Recusei por interesse...

— Ora, doutor!... murmurou timidamente a tia de Emília.

— É verdade, D. Leocádia, por interesse e ambição! Também tenho as minhas superstições! Acreditava, e ainda acredito, que a minha primeira cura me devia dar felicidade, se eu a votasse como pia oferenda à ciência e à humanidade. E não me enganei!... Foi sua amizade, Sr. Duarte, e a maneira por que recomendou o meu nome aos seus amigos que me fizeram conhecido e chamado.

— Diga o seu talento; isto sim é que o fez conhecido e há de torná-lo um dos primeiros médicos do Rio de Janeiro.

— Não tenho tais pretensões. Já vê pois, D. Leocádia, que meu desinteresse não passou de uma pequena especulação feita sobre a amizade e gratidão de sua família!

Durante esta conversa eu não deixara de observar Emília. Ela estava ainda na janela; a princípio fez um movimento para voltar-se, que logo reprimiu depois pendera a fronte na mão e conservara-se imóvel.

As minhas últimas palavras a arrancaram bruscamente a essa atitude pensativa; atravessou a sala e veio sentar-se no sofá, defronte de mim. Toda ela era desdém e altivez. Nós cruzamos um olhar, como dois adversários cruzam o ferro, começando o combate.

— O doutor está gracejando! disse-me D. Leocádia.

— Demais, eu não fui tão desinteressado como parecia, porque... Deve recordar-se, Sr. Duarte... Recusando naquela ocasião prometi-lhe contudo que, se alguma vez me achasse em embaraços, não recorreria a nenhuma outra pessoa...

— É exato! O senhor deu-me a sua palavra... Mas infelizmente ainda não chegou essa ocasião, e receio que nunca chegue.

— Pois chegou! disse eu corando, malgrado meu.

Diva (1864)Where stories live. Discover now