Admirei-me, chegando, da ausência de convidados, e especialmente da família de D. Matilde.
— Parece que não esperam ninguém mais — respondeu-me o criado. — O senhor mesmo janta na cidade.
Entretanto a casa, cujos reparos haviam completamente terminado, estava preparada como para grande recepção: notava-se em toda ela o ar de festa que expande a fisionomia dos edifícios como a das pessoas, porque os edifícios inspiram a alma daqueles que os habitam.
D. Leocádia veio receber-me.
— Já sei que está muito curioso de saber o motivo deste jantar?
— Creio que, apesar de não ser dos mais atilados, já o adivinhei!
— Deveras! Vamos a ver!
— É mais uma prova da sua bondade para comigo, e de seus repetidos obséquios...
— Pois não acertou! Pretendíamos, logo que se acabassem as obras da casa, reunir aqui todas as pessoas da nossa amizade; porém mano José não entende destas coisas, Geraldo é uma criança... E nós queríamos saber a opinião de uma pessoa de gosto... Talvez note alguma coisa que não pareça bem!
Era um pretexto. D. Leocádia repetia a lição que recebera da sobrinha. O império dessa menina era tal que não impunha unicamente obediência às pessoas que a cercavam; obrigava-as a se identificarem com a sua vontade, anulando-se.
Emília apareceu. Na simplicidade extrema de seu trajo ela parecia apenas vestida, tal era o realce de sua beleza nativa, e a sobriedade dos enfeites; entretanto nunca roupas de virgem foram assim avaras de encantos. A beleza não se mostrava, transparecia.
Ela vinha, como sempre, coroada pela régia altivez, que era o gesto de sua formosura; porém nesse dia perpassava-lhe na fronte de ordinário tão límpida uma tênue sombra, de uma mágoa talvez.
Cortejou-me, não fria, mas séria; foi até a janela, e veio depois sentar-se ao piano. Enquanto eu continuava a conversar com D. Leocádia, suas mãos corriam lentamente pelo teclado, que exalava uns arpejos frouxos e dolentes.
D. Leocádia saíra um instante.
O piano calou-se, enfim. Eu vi Emília de pé no meio da sala, hesitando no passo que a devia aproximar de mim:
— Perdoe-me! disse-me ela.
E a voz com que o disse tinha modulações sublimes.
— Sei agora quanto o ofendi! Não sabia então quanto lhe devo! Minha tia contou-me...
— A senhora nada me deve, D. Emília. Estou pago! Já recebi o meu salário. Foi o preço de uma gratidão que tanto a incomodava!
— Não me diga isso! Seja sempre generoso!
— Quem deve sou eu. Um doente rico tem à sua disposição todos os médicos e os melhores; mas, para um médico principiante e desconhecido, um doente que paga bem é uma fortuna!
— Eu mereci estas palavras, porque fui má e injusta... Fui até sem delicadeza!... Mas se lhe confessasse... teria pena de mim!
— Confessar-me o quê, D. Emília? perguntei comovido.
A tia voltava.
— Logo!...
Ela articulou essa palavra, já calma e sem o menor vexame, com a voz tão clara, que D. Leocádia devia ter ouvido.
Eu ia de mistério em mistério. Que significava a estranha confidência de Emília? Que exprimia aquele misto de franqueza e reserva, de placidez e emoção?