Ao nascer do sol, já eu esperava Emília.
Que longa noite!
Sofria horrivelmente, mas como um enfermo desacordado. O estupor do espírito, que me fulminou ouvindo a cruel revelação, continuava. Não podia compreender Emília, o anjo do celeste pudor, a altiva rainha das minhas adorações, transformada de súbito numa desprezível namoradeira de sala.
Havia momentos em que eu achava dentro em mim a imagem de duas Emílias, uma para o meu desprezo, outra para o meu amor. E minha alma, ora exaltava-se em seu orgulho para cuspir a baba da indignação às faces daquela, ora ajoelhava humilde e dolente para chorar seu infortúnio aos pés desta.
Passara uma parte da noite a reler os versos do Álvares; ainda os tenho de cor apesar dos esforços que faço para esquecê-los. Eles por aí correm num volume de poesias, recentemente publicado por esse moço. Tem por epígrafe — A ela.
Quando o sol espancou as trevas, não sei que serenidade derramou-se em meu seio. Era talvez a saciedade do sofrimento.
Emília veio meiga e serena, como a tinha deixado na véspera. O baile longe de fatigar, repousava sempre essa incompreensível criatura. Havia no sorriso dos lábios, no cetim das faces e na irradiação do olhar, o primor de virgindade que têm as flores recentemente desabrochadas. Quem visse essas límpidas auroras de sua beleza, julgaria que ela acabava de nascer moça, ao despontar do sol, como as rosas e as borboletas. Tal era o frescor e o viço da sua formosura.
Quando a percebi de longe, senti que o meu coração exauria-se; a indignação que o enchera até aquele momento fugiu dele. Temia que o primeiro olhar de Emília dissipasse a minha cólera, e que sua primeira palavra me curvasse a seus pés humilhado ainda por um amor já indigno.
— D. Emília — disse-lhe eu — receio ofendê-la... Talvez o melhor fosse calar-me.
— O que mais me pode ofender de sua parte é o silêncio, quando o senhor tem um ressentimento de mim. Fale, não tenha receio. Bem vê que eu estou tranqüila.
— Pois então ouça-me e desculpe. Sem dúvida a senhora julgará pouco nobre meu procedimento, surpreendendo um segredo alheio; mas lembre-se de que eu a amava!... E a amava tanto, que tive a coragem de aviltar-me ao meu amor. Sinto este orgulho!
Pela primeira vez Emília pareceu surpresa:
— Não compreendo! Que fez o senhor?
Mostrei-lhe os versos e contei-lhe tudo quanto soubera na véspera, durante o baile; tímido e balbuciante em princípio, ia-me reanimando à medida que a evocação daquelas cruéis recordações magoava minha alma ulcerada; o desespero prorrompeu afinal.
Emília me ouvira impassível.
— Bem vê que eu sei tudo, D. Emília!
Ela não me respondeu.
— Ouviria eu mal? Não compreenderia as suas palavras?
— Ora! O senhor é tão perspicaz!
— Assim não me iludi? Esses homens a amam, e a senhora lhes corresponde?
— O senhor o diz!
— Meu Deus! Mas a senhora não sabe que nome tem isso?...
Emília ergueu-se de um ímpeto. Seus olhos tinham raios lívidos, e sua fronte um luzimento de mármore.
— O nome?... exclamou ela. — O nome que isso tem? Eu lhe digo! É a indiferença... Não! É o desprezo, que me inspiram todas estas paixões ridículas que tenho encontrado em meu caminho! Ah! Pensa que amo a algum deles? Tanto como ao senhor!... O amor, eu bem o procuro, mas não o acho. Ninguém ainda mo soube inspirar. Meu coração está virgem! Tenho eu a culpa?... Oh! Que ente injusto e egoísta que é o homem! Quando nos ama, dá-nos apenas os sobejos de suas paixões e as ruínas de sua alma; e entretanto julga-se com direito a exigir de nós um coração não só puro, mas também ignorante! Devemos amá-los sem saber ainda o que é o amor; a eles compete ensinar-nos... educar a mulher... como dizem em seu orgulho! E ai da mísera escrava que mais tarde conheceu que não amava!... Seu senhor é inexorável e não perdoa!... Basta-lhe um aceno, e a multidão apedreja!