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As vicissitudes de frieza e indiferença, com que Emília me tratava, não tinham nada que se parecesse com o jogo bem conhecido das moças loureiras, que desdenham quem as persegue e procuram quem as foge. Não havia regra nos seus caprichos. Quando ela queria vir a mim, vinha, sem afetação, francamente, estivesse eu perto ou longe, embebido a contemplá-la ou distraído ao braço de outra moça.

Emília não tinha rivais, não me disputava a ninguém; dominava-me na soberania de sua beleza, e atraía-me ou arredava-me a seu bel-prazer, com um cenho apenas da sua graciosa majestade.

Eu era para essa moça como um vaso onde ela guardava as essências de sua alma para mais tarde aspirar-lhes o perfume. Quando chegavam as horas dessa afluência do coração, ela procurava-me para vazá-la em mim: a sua palavra ardente abundava então do lábio vívido. Outros dias chegava-se muda e absorta; parecia haver dentro dela uma grande solidão, onde seu espírito se perdia.

— Diga-me alguma coisa! murmurava ela. — Fale-me... Fale do céu, das nuvens, do mar, do que Deus criou de melhor neste mundo!...

E eu falava; e ela bebia as minhas palavras, que lhe matavam a sede d'alma.

Fora desses momentos, em que sua alma sentia uma necessidade irresistível de expansão ou de absorção, ela parecia esquecer-me.

Foi por este tempo que eu tomei uma grande resolução. Afagara sempre a idéia de ter uma pequena chácara onde me refugiasse às tardes, escapando ao burburinho da cidade.

Aproveitei esse pretexto para aproximar-me de Emília. Indo visitá-la um dia, vi com escritos uma casinha pendurada na aba da montanha, perto de sua chácara. Dali descortinava-se o seu jardim, o terraço e as janelas dos aposentos que ela ocupava na face esquerda do edifício. Com um óculo de alcance eu poderia vê-la a cada momento.

Alugada a casa, assaltou-me o receio de desagradar-lhe. Sabia eu se era amado? E quando o fosse já, a imprudência que ia cometer não assustaria uma afeição nascente?

— Não importa! pensei eu. — É um meio decisivo de saber se ela me ama.

Fui vê-la. Estava no jardim com D. Leocádia; brincava com um grande cão da Terra Nova, e parecia sentir um indefinível prazer em irritar a cólera do tranqüilo animal. Uma vez corri, pensando que ela ia ser vítima da sua imprudência; o cão irado rosnava, encolhendo o dorso, e rolando a pupila injetada.

Emília sorriu; a um gesto de sua mão, o animal foi deitar-se a seus pés, acariciando a fímbria do vestido. Ela atirou-lhe um olhar desdenhoso, e tocando-o com a ponta da botina obrigou-o a afastar-se. Depois voltou-se para mim com uma expressão indefinível de orgulho repassado de tédio:

— Não tenha receio... Tudo aqui me obedece, até este bruto!... Por mais que o irrite... Não passa disso!

Anunciei-lhe a resolução que tomara de aproximar-me dela; e o fiz trêmulo e receoso. Respondeu-me com simplicidade:

— Melhor! Estaremos mais perto! Estimo bem.

— Pois eu receava que isso lhe desagradasse!

— Por que motivo?

— Já não tem medo?... perguntei-lhe sorrindo.

— Do senhor?... Não!... De mim... talvez.

Emília tinha dessas frases incompletas, proferidas com uma singeleza volúbil, das quais era impossível compreender o verdadeiro sentido.

Imagina que delícia foram para mim os dois breves meses que passei naquele pitoresco retiro do Rio Comprido, onde eu me abrigava todas as tardes como no regaço da felicidade. Trabalhava então com entusiasmo. Os júbilos que vertiam de minha alma sobrariam à vida mais pródiga; eu tinha ventura em profusão, que chegaria bem para encher duas existências. E entretanto não ousara ainda confessar a Emília o meu amor!

Diva (1864)Where stories live. Discover now