parte IV

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A coroação não poderia ser feita antes do natal e claro que isso deixou o meu pai irritadiço. Eu não queria ficar perto daquele homem de modo algum, principalmente naquele dia em que ele já havia dito diversas vezes que eu nunca conseguiria achar um par para mim.

Acredito que o que mais amedrontava o meu pai era que se eu não assumisse o trono, ele automaticamente seria de minha mãe, e eu tinha total certeza de que ela seria uma rainha melhor que eu e ele juntos. Talvez eu estivesse jogando sujo para que ela se tornasse alguém com mais voz.

A verdade era que ele gostaria que eu me casasse com um homem qualquer para que este mesmo tomasse a minha voz e assumisse por mim. Eu seria apenas a imagem da família à frente do reino, porque de fato quem ele sempre quis como sucessor era um homem.

Minha saída não tinha rumo. Sair sem destino se tornou meu passatempo, ainda mais naquele ar frio. A neve afundando abaixo de meus pés por todas as vezes que eu a pisoteava exprimia a liberdade que eu queria sentir todos os dias e não podia. Sentar-me abaixo de uma árvore congelada e tremelicar pela ventania era inexplicavelmente delicioso.

Do bolso de minha calça de linho — algo que meu pai tinha repugnância, já que ele pregava que mulheres tinham de trajar vestidos do melhor bordado —, retirei o caderno desgastado de poesias. Ele me acompanhava há cerca de três meses e logo entraria para a pilha que eu colecionava desde os quatorze anos.

E quando o medo de ter uma mulher no mesmo estágio que o teu falar mais alto que o teu caráter
lembre-se de onde você veio
o orgulho ferido de uma leve camada superficial de bravura doutrina o sexo mais frágil
e é nesse aspecto que reconheço qual ele é
tenha a certeza, querido, de que não é o sexo que te carregou por meses
mas sim aquele que tem medo da equidade.

Me sentia perigosa em escrever tais coisas e, em simultâneo, idiota por não ter coragem de falar no momento certo. Fechei aquele caderno e os olhos, ao mesmo tempo, aspirei o ar frio e enterrei os pés na neve, arfando duramente e quase congelando os pulmões. Sozinha, estava sozinha.

Estava?!

Abri os olhos rapidamente e olhei para a esquerda, bem onde ela estava. Não que eu tenha esquecido dela, mas os desvarios haviam perdido a força. Agora, em minha frente, eu só conseguia não ter ar. Dei um pequeno pulo para trás e ela exibiu o seu sorriso. Era branco como a neve e genioso como a própria dona.

— Não vou roubá-la, pode ficar calma — ergueu as mãos em sinal de rendição.

— Não imaginei ir, só levei um susto — minha voz falhou enquanto escondi o caderno debaixo da coxa.

— Posso me aproximar ou a área é restrita?!

Eu não respondi, a minha expressão bastava para ela saber o que eu queria dizer. Aos poucos, seus pés foram pisoteando no chão até chegarem a mim, sentando-se ao meu lado.

— Uma princesa sozinha no meio da neve... Essa, para mim, é uma grande novidade.

— Você também estava sozinha.

— Verdade — senti seus olhos cinzas em mim e eu só queria esconder os meus porque não queria que ela soubesse de minha heterocromia. — Podemos nos apresentar antes de meu pedido desculpas por aquele dia?!

— Claro — mantive o rosto cabisbaixo. — Kim Jiwoo.

— Ha Sooyoung. Podia pelo menos me olhar?! — levantei a cabeça, de olhos fechados, e depois fui abrindo aos poucos para ela poder observar o que eu escondia.

Nada disse, só ficou me olhando como se fosse a melhor das obras de arte vistas em toda a sua vida. Não sei se Sooyoung já havia percebido os meus olhos em nosso primeiro encontro e gostava de me constranger ou se era extremamente lenta no raciocínio. Eu tinha muitas opções e todas pareciam certas.

— Seus olhos... — ela sussurrou, segurando o meu queixo e assistindo minhas bochechas colorirem-se em tom rubro. — Jiwoo...

Eu me levantei e fugi mais uma vez dela. Claro que não deixei o meu caderno ali para ela ler e descobrir os meus maiores segredos. Naquele pisotear da neve, eu chorei e não sabia por qual motivo.

Poderia ser a confusão mental, o medo da renegação do reino ou de meu pai em saber que sua única filha não era o seu espelho. Tudo o que eu queria era fugir da única pessoa que mais me atormentava: eu mesma.

winter things ✦ chuuvesOnde histórias criam vida. Descubra agora