Coloco os brincos sobre o balcão de madeira da loja de penhores e os encaro por alguns segundos. Eles são de ouro, no formato de flores que balançam sempre que você move a cabeça. Eu costumava usá-los todo o tempo, mesmo sendo muito extravagantes para dias comuns. Havia algo na cor, no formato que fazia meus olhos ficarem mais brilhantes. E também, sempre que eu os usava, Renato me olhava de um jeito diferente.
Quase choro. Posso sentir as lágrimas se acumulando atrás dos meus olhos, queimando meu rosto desde as bochechas. Todas as lembranças minhas com este brinco são boas. A mais recente foi na noite de Natal, quando Renato me presenteou com um jogo de tabuleiro vintage. Eu sorri tanto naquela noite que meu rosto ficou doendo e eu me obriguei a parar. Acho que vou sentir falta disso.
Preciso manter o foco. Tenho que fazer isso, porque para onde vou preciso de dinheiro, e não tenho mais nada além desses brincos e de mais algumas bugigangas para vender.
A mulher do outro lado do balcão analisa todos os itens que lhe entreguei minuciosamente, deixando os brincos por último. Ela sabe que eles são valiosos, senão teria ido direto neles para conferir a autenticidade. Se a mulher os ignorou, é porque quer demonstrar desinteresse e me fazer acreditar que eles valem menos do que realmente pode pagar. Não vou cair nessa.
— Trezentos.
— O que? Tá brincando? São de ouro!
— Trezentos. É pegar ou largar.
Bufo, contrariada, e concordo.
Nunca pensei que chegaria a esse ponto, mas é isso o que acontece quando se está sozinha, cuidando de si mesma. Não há garantias, não há pessoas nas quais se apoiar. Você não tem sua mãe para lhe arrumar uma grana, nem seu pai para te ajudar naquela parcela ou naquela passagem. Você não tem um namorado para te dar uma carona até a cidade de São Paulo, onde você planeja sumir permanentemente.
Sim, estou sozinha, e preciso me virar. Preciso desses trezentos, mesmo que eles pudessem ter sido oitocentos.
Pego o dinheiro ainda emburrada e olho os brincos pela última vez antes de sair da loja, encarando o sol do meio dia. Minhas botas apertam meus pés, e a jaqueta jeans não aquece o suficiente. O inverno veio rigoroso esse ano, muito mais que todos os outros. Sei disso porque Renato não costuma sentir frio, mas dormiu com cobertores por um mês e meio.
Renato.
Deus, como sinto a falta dele. E só se passaram doze horas.
Atravesso a rua e entro em uma padaria. Peço um misto quente e café. Gasto uma pequena porcentagem dos meus trezentos reais com isso e com o refrigerante que compro para a viagem. Então sigo para o terminal rodoviário e espero por vinte minutos até que meu ônibus chegue. Ele não é nada especial, não é nada dramático; é só um ônibus com lugares acolchoados, que não tem ar condicionado e nem wifi. Eu entro nele esperando que isso me faça sentir melhor, que aquela sensação de uma boa mudança apareça para me dizer que estou agindo certo, mas nada muda. Enquanto procuro o meu lugar, verificando as numerações, continuo com a impressão de que algo está errado.
Em nome da sã consciência, deixei o melhor homem que já conheci para trás. Ele deve estar procurando por mim neste momento, revirando a cidade pequena onde passamos três longos anos dividindo um sobrado em uma rua sem saída. Recebi várias mensagens e ligações dele, mas ignorei todas. Toda vez que vejo a foto na tela é como um soco, mas não posso voltar atrás. Aquilo estava me matando. Aquela vida, aquela cama, aquela janela de cara para uma parede amarela. Eu sempre quis ser amada, sempre quis amar alguém, mas depois de três anos percebi que preferia amar e ser amada por outras coisas. Talvez o mundo ainda tivesse surpresas para me oferecer, lugares para me mostrar, e eu nunca conheceria nada se continuasse presa naquele sobrado minúsculo, com uma pessoa que poderia significar o mundo, mas não era ele.
Por isso eu fui embora. Doze horas atrás, com apenas algumas notas no bolso, documentos, celular e um fone de ouvido. Quero ir para São Paulo, que nunca dorme e nunca me deixará dormir. Quero conhecer novas pessoas e quero poder respirar tão fundo que sairei voando.
Quero saber tudo o que eu tenho direito de saber, conhecer todos os lugares possíveis, amar todo mundo que aparecer no meu caminho.
Sei que é egoísta pensar desse jeito, mas há poucas coisas no mundo que são tão certas quanto a morte. Eu não quero morrer em um sobrado no fim de uma rua sem saída. Talvez eu queira morrer em São Paulo, ou em Los Angeles, ou até mesmo em uma cidade do Litoral. Certo, eu cheguei a querer morrer ao lardo de Renato. Alguns anos atrás era tudo o que eu pensava, tudo o que eu desejava: partir ao lado do homem que eu amo. Mas isso mudou, apesar de eu ainda amá-lo com todo o meu coração. Hoje, o que preciso é diferente do que eu quero. Por mais que ficar naquele sobrado seja bom, não é o que sinto vontade de fazer, então acho que Renato e eu não somos mais compatíveis.
A vida fazendo almoço e costurando em uma máquina de 1989 não é a vida que eu sinto vontade de viver, mas é o sonho de Renato, e sempre foi. Eu não posso seguir essa ilusão, não posso continuar em um lugar por causa de uma pessoa.
Preciso respeitar as minhas vontades, os meus sonhos, as minhas expectativas.
E está tudo bem com Renato, porque ele fez a parte dele enquanto fiz a minha. Nós fomos felizes, nos respeitamos, nos amamos. Coisas que, sinceramente, posso fazer mais uma vez. Várias vezes. Com outras pessoas e outros lugares, como se eu fosse um quebra-cabeças propositalmente espalhado pelo chão, pronto para ser montado e remontado diversas vezes, de diversas formas diferentes, por diversas pessoas.
Sei que, no fundo, nenhum homem pode me montar. Sou quebrada desde que nasci. Por isso, na maioria das vezes, eu me monto sozinha. Eu me entendo, eu me completo, eu sou a minha melhor amiga e, quando não consigo, me desmonto como se precisasse começar de novo.
Às vezes, deixo outras pessoas tentarem me montar também.
É quando dá errado, mas gosto da experiência.
...
PRÓXIMO CONTO:
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Uma viagem escolar com destino final em Veneza, uma péssima reputação e um boato maldoso: tudo isso foi a ruína de uma garota, mas o ascender de uma grande paixão.