RIDE

3.5K 403 164
                                    

Talvez não seja exagero dizer que ela salvou a minha vida.

É estranho pensar nisso, mas ela salvou a minha vida. De todas as maneiras possíveis, dos modos mais estranhos, no momento mais inoportuno.

Enquanto eu perdia tudo o que eu tinha, algo novo chegou. E era ela.

Sempre foi a respeito dela.

...

Eu estive imersa na estrada por muito tempo. E por mais que eu gostasse de cantar sobre palcos de bares perdidos em rodovias esquecidas, aquilo estava ficando velho. A sensação do vento em meus cabelos e o seu fantasma quando o motor era desligado não parecia ser o suficiente para me manter indo em frente.

Morrer jovem e jogar para valer, esse era o lema do meu pai. O modo como ele transformou a vida dele em arte enquanto viajava pelo país em busca de aventuras, dinheiro e bebida foi o que o transformou em uma lenda. Um homem conhecido por todos os que também amavam viajar sobre duas rodas.

Confesso que, quando pequena, eu me assustava com a falta de estabilidade em nossas vidas, mas depois comecei a gostar. Tentei parecer com meu pai, mas minha mãe sempre se encarregou de manter seu espírito aventureiro longe da pequena e frágil Elle. Ela queria me proteger dos perigos, dos corações partidos e dos momentos não tão prazeroso que a vida dele levava, mas foi inútil: quando cresci e consegui minha independência, não pude evitar me juntar a ele naquela jornada. A vida na estrada era como um livro aberto, cada quilômetro virando um capítulo diferente.

Mas então o meu pai morreu. Ele tinha sessenta e três anos e acabou se envolvendo em uma briga para defender um dos membros do seu grupo de motoqueiros. Apesar disso, sempre digo que ele morreu feliz, e apesar de nada jovem (como ele sempre previu), tinha pelo menos três vidas de vantagem em relação às pessoas normais. E eu posso dizer, com toda a certeza do mundo, que não havia nada que ele tivesse arrependimento sobre. Sua existência foi uma obra de arte cheia de altos e baixos até o dia em que morreu e me deixou para trás.

Então eu segui a minha própria viagem, sempre me inspirando na dele. Buscando traçar os mesmos caminhos e resgatar os mesmos valores. Só assim eu ficaria sempre perto do meu amado e querido pai. Eu nunca o esqueceria. Nunca me sentiria sozinha de novo.

     Porque era um inferno. Quando eu não estava com ele, digo. Porque meu pai era o único com o espírito livro o suficiente para se igualar ao meu.

Mas buscar uma jornada igual à dele não era o suficiente.

Nunca foi.

— Elle, você está com sede?

Senti algo me puxar para a realidade, para o estacionamento do posto de gasolina na beira da estrada no qual eu estacionei a minha moto.

— Não.

Na verdade, eu pouco sentia sede quando estava pilotando. Era como se todas as minhas necessidades naturais sumissem e restasse apenas eu, a estrada e a moto: um único ser não vivo correndo pelo país sem querer nunca parar. Era como se eu estivesse constantemente em fuga.

Às vezes eu me esquecia de como era quando meu pai estava por perto. Depois de tanto tempo viajando sem ele as lembranças começaram a não ter a onde pertencer. Os fragmentos se misturavam, as cenas se confundiam. Em um minuto não se era possível lembrar onde havíamos ajudado aquela garota de sorriso simpático, ou de quando exatamente tudo começou.

— Vamos, Elle!

Virei para o restante do grupo. Todos estavam em suas motos, com suas águas e seus petiscos comprados na loja de conveniências. Eu me ajeitei e os segui quando saíram do estacionamento, mantendo uma velocidade razoável, ainda me acostumando à moto que antes pertencia ao meu pai.

ULTRAVIOLENCEOnde histórias criam vida. Descubra agora