Era oito da manhã, mas Esther, acostumada a acordar cedo, ainda estava em seu primeiro sono na confortável cama do quarto de hóspedes de Frank Weber.
Na noite anterior, eles pararam de conversar freneticamente de madrugada. Frank pediu à ela que dormisse no quarto de hóspedes e terminariam a conversa de manhã, assim que os dois acordassem. Infelizmente, ambos não conseguiram dormir instantâneamente, apesar do sono intenso, porque suas mentes não paravam de trabalhar para processar os últimos acontecimentos. Frank estava assustado e pensando nos próximos passos a tomar; Esther estava vitoriosa, atônita e preocupada.
Frank não podia se dar ao luxo de dormir até o horário de almoço. Acordou cedo, com as olheiras fundas, tomou um breve café e foi trabalhar. Quanto à Esther, não quis acordá-la. Sabia da noite difícil que ela tivera e decidiu deixá-la descansar pelo menos naquele dia.
Na hora em que Esther despertou, levou um susto e sua mente demorou a se conscientizar dos últimos eventos. A igreja pegou fogo... eu salvei uma criança... eu voltei para dentro das chamas e consegui escapar pela floresta... Bernard me ajudou... meu nome agora é Anelise Braun... talvez Frank possa me ajudar... todos pensam que eu estou morta, mas eles podem me achar.
Eram muitas coisas a serem processadas. Sua mente não tinha tanta potência para aguentar tudo de uma vez e continuar saudável. Por isso, ela ficou cerca de uma hora na cama recobrando os sentidos e sentindo todos os seus membros doerem.
Ontem ela não havia sentido dor, apenas pequenos incômodos no corpo e na queimadura. Porém, ao acordar, ela parecia estar num odioso estado dolorido. Seus membros abatidos, que ela esforçou demais para conseguir fugir, estavam totalmente doloridos. A queimadura fervia. Ficou inerte, sentindo a dor física e a desolação mental por todos esses momentos.
Então, levantou-se. Olhou em volta e contemplou com mais detalhes o quarto. Era branco, grandes, simples e bonito. Sobre a cômoda também branca, tinha a foto de uma garota bonita, de pele bronzeada, olhos verdes e cabelos loiros. Ela sorria, demonstrando felicidade e satisfação. Deve ser filha dele, pensou.
Ao entrar no banheiro que tinha na suíte, ela ligou a torneira da banheira e a deixou encher. Fechou a porta e se despiu. Mesmo sem a autorização de Weber, ela iria tomar um banho para relaxar e se limpar. Se ele já havia deixado ela dormir lá, por que não banhar-se? Além disso, ela não tinha lugar para ir até então. O objetivo do dia era arrumar um emprego de meio período que pagasse suas contas por lá. Mesmo que seus planos incluíssem morar em uma república, ela sabia que seria pago. Os dormitórios eram difíceis de conseguir e, por isso, ela não queria contar com eles.
A água quente chocando-se contra seu corpo desnutrido pelos últimos acontecimentos e machucado lhe causou uma sensação impossível de descrever. Ela relaxou e esqueceu de tudo que perseguia seus pensamentos desde o instante em que acordou. Não mediu o tempo em que ficou relaxando na banheira. Quando finalmente saiu de lá, já eram quatro da tarde.
Ela trocou-se no quarto e, novamente, visualizou a foto sobre a cômoda daquela garota.
Quando saiu do aposento, andou pelo enorme apartamento sem a expectativa de encontrá-lo. Ela já sabia que estava tarde e ele havia ido trabalhar; voltaria daqui a pouco, quando a noite caísse.
Esther vestia uma das roupas que Bernard havia comprado para ela no dia anterior. Calça jeans e suéter: era basicamente o que compunha suas vestes. Quando arrumasse um emprego e iniciasse seus estudos, ela prometeu a si mesma que iria enriquecer seu simples guarda-roupa com casacos.
Ao longo do apartamento, ela foi reparando que a decoração se tratava de fotos de uma família feliz. Uma esposa bela e esbelta, a mesma garota bonita da foto da cômoda e um menino pouco mais novo que ela, também muito bonito. Ambos pareciam com a mãe. Na maioria das fotos, notava-se a presença de Frank Weber, entretanto, nem todas as fotos contavam com sua versão feliz. Havia algumas nas quais ele aparecia sério demais e perverso. Hoje em dia só restou uma versão triste e melancólica, pensou.
Quem eram aquelas pessoas que preenchiam o apartamento? A família dele? Se sim, onde estavam neste momento? Por que não estavam lá? O que tinha acontecido? Seria conveniente ela perguntar para Frank? Ela não sabia.
Enquanto fitava fixamente uma das fotografias, Frank abriu a porta e tirou Esther de seu transe num susto que lhe custou várias batidas cardíacas aceleradas.
— Oi. — ela sussurrou.
— Olá. — exclamou.
Frank fechou a porta e, depois disso, a encarou.
— Quem... Quem são essas pessoas? — Esther soltou sem querer.
— Minha esposa e meus filhos.
A resposta não surpreendeu Esther.
— Anelise, preciso conversar com você.
— Esther.
— Esther, tanto faz. — ele viu a expressão angustiada da garota. — Prefere que eu lhe chame por Esther?
— Você quem sabe.
Ele caminhou até ela e parou. O rosto ainda inchado entregava que a garota acordara há pouco tempo.
— Venha, irei preparar um chá para nós.
Ela seguiu Frank até a cozinha na qual fez um café na noite passada.
Frank tinha a habilidade culinária de um homem divorciado. O chá era doce e quente, semelhante ao que a mãe de Esther fazia. Também haviam pães, bolo e queijo na mesa, além do leite. Um dos bolos era a famosa cuca alemã. Particularmente, ela nunca foi fã do doce que sua avó fazia todas as vezes que recebia os dois netos em casa.
— Quais são as notícias? — perguntou Esther, enquanto tomava chá.
— Suas aulas começarão oficialmente na segunda que vem. Você tem uma semana para se organizar.
Os olhos de Esther começaram a brilhar. Mas, além da felicidade, também havia cautela. Nunca se sabia quando a vida iria lhe proporcionar uma grande quebra de expectativa.
— O que o senhor quis dizer?
— Que irei te apoiar. Pode contar comigo. — e lançou um olhar amigável para ela. Um olhar que ela nunca imaginou ver aquele homem dar.
***
Klaus Sperb não dormira a noite. Quando o relógio avisou que eram sete da manhã de terça-feira, ele simplesmente desligou o despertador da forma mais pacífica possível: atirou o aparelho contra a parede, quebrando-o em pedaços. Não que ele não fosse um homem paciente, mas tantas dúvidas estavam lhe consumindo e, junto aos elementos que formavam seu ser que eram consumidos pelas dúvidas, estava sua inestimável paciência.
Esther Ruschel poderia ter colocado fogo na igreja de propósito só para ser uma espécie de fuga? Seu modus operanti era tão insensível assim? Não restava-lhe dúvidas quanto à isso. Para Klaus, nada justificava você matar e causar prejuízos de longa escala só para livrar-se de algum demônio interno ou satisfazer suas ambições obscuras. Assim foi que Esther Ruschel passou de uma menina que ele sentia o dever de procurar e garantir à família que ela estava bem, à uma criminosa.
Sperb confiava veemente em seus instintos. Se ele achava que Esther era uma perversa, então ela era.
Soube que a comunidade de Darmstadt, nos últimos dias, comoveu-se com a história da garota que morreu para ajudar ao próximo. Eles iam organizar uma homenagem à ela no sábado, contando com toda a igreja luterana que mal sabia o nome dela antes o incêndio. Mas Klaus estava disposto a mostrar, hora ou outra, que a gloriosa senhorita Ruschel não passava de uma criminosa. Realmente, seus conceitos em relação à ela mudou muito após a conversa que tivera com o pastor Karl Jung.
Entretanto, o que lhe impedia de levar à público sua teoria o mais rápido possível era que, certamente, ele seria visto como louco e até poderia ser afastado de seu cargo. Um homem de quase quarenta anos não poderia se dar ao luxo de perder tudo só por conta de uma delinquente psicopata.
Sua maior missão, a partir daquela manhã, era localizá-la e provar à todos que ele estava realmente certo.
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A Dama De Leipzig
Mystery / ThrillerEsther Ruschel cresceu sob os cuidados de um pai paranóico, que insistia que a esposa, Eva, lhe traía. Todos os danos psicológicos, as brigas e o descontentamento com a vida que leva fez com que a genial aluna recém-formada tomasse uma decisão difíc...