Açougue 1:1

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O som do despertador, às 5 horas da manhã era um dos sons que Allan mais odiava. Começava distante e lento, um 'bip' seco e sem vida ecoando no fundo de uma casa vazia. E aumentava a medida que sua irritação crescia.

Eram sentimentos siameses. O dissabor e o início de um novo dia.

Ele esticou a mão e desligou o relógio em cima do criado mudo. Um movimento preciso e triste. Abriu os olhos.

"Bom dia". As letras estavam escritas à mão, no teto acima da sua cama. Era a primeira coisa que lia pela manhã, assim que acordava.

"Bom dia"

A bem da verdade, a palavra 'Bom' já estava quase apagada, ilegível. Restava apenas dia. E um sentimento grosso e pesado de desesperança dentro do peito.

Allan recordava o dia em que pegará a escada na lavanderia e se equilibrara toscamente para escrever as duas palavras. Tão poderosas, naquele momento. Pequenos atos para a resistência da alma. Gotículas de esperança que ainda pairavam em alguns cantos, sozinhas e assustadas, a espera de uma morte trágica.

Ele também se lembrava do dia em que tentará apagar a palavra "Bom" com um solvente. Tudo o que conseguiu fora deixar um borrão quase ilegível.

"Bom" não era uma palavra que se usava muito, ultimamente. Não havia motivos para ela estar ali.

"Dia" - pensou ele. Um esforço gigantesco, era o que precisava ao se dar conta de que iniciava-se um novo dia.

Escovou os dentes e limpou o rosto com um pouco de água. 200ml era tudo o que podia usar pela manhã. Devia se sentir grato.

"Malditos" - pensou, imprimindo potência no praguejo

"Podiam morrer todos".

Secou o rosto e saiu pela porta que dava acesso a parte de traz do açougue.

"Maldito cheiro de morte". O odor do ferro em suas narinas o acompanhava durante todo dia, até o anoitecer.

Com o passar do tempo, notou que aquele cheiro também o acompanhava durante os curtos períodos de descanso e durante as refeições. Não demorou muito até que pudesse sentí-lo a todo momento, e fatalmente, para que não o sentisse mais.

Exceto nas manhãs, quando a realidade se esfregava em seus olhos e se esgueirava pelas narinas.

Vestiu o avental branco enquanto ouvia uma sirene leve ao fundo. Eram os entregadores.

"Maldito seja aquele que inventou a sirene".

A luz dos faróis do caminhão deixavam um fino traço iluminado entre o chão e o portão metálico usado para as entregas. Allan o abriu.

- Bom dia. - disse o entregador, com um sorriso largo estampado no rosto. O homem tirou o chapéu da cabeça e fez um leve aceno.

"As merdas que a gente se acostuma... E você com esse sorriso bosta no rosto, como quem diz que tá tudo bem.. . Verme... Mas eu sei que você se acha o máximo... Todos os dias... Por ter sido um dos escolhidos, anos atrás... Os privilegiados, é como nos chamam. A escória que prostitui seus valores em troca de um espaço protegido dentro da máquina... Vermes... ".

- Dia. - respondeu Allan, com um leve aceno de cabeça, enquanto observava outros dois homens carregando algumas caixas com carne resfriada para dentro do açougue.

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