2025

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Tudo começou com as abelhas.

Quem diria, afinal, que uma forma de vida tão pequena - e insignificante, de acordo com a soberba humana - seria capaz de desencadear uma reação que levaria ao nosso declínio enquanto raça dominante.

As abelhas fizeram seu papel.

Elas foram capazes de expor a bestialidade humana. Revelaram todo o backstage por detrás das cortinas e, quando olhamos por através, só vimos destruição, dor e desumanidade.

Desumanos - foi o que nos tornamos com o passar do tempo.

Mas esse desfexo não foi mérito das abelhas. Essa glória carregaremos sozinhos pela eternidade. A glória de nós tornarmos a pior versão de nós mesmos... Não é um título fácil de se conseguir.

Foi em 2025 que declararam, oficialmente, extintas as abelhas. A humanidade, naquele época, não deu muita atenção - estávamos mais ocupados com outros assuntos. Aquecimento global e coisas relacionadas ao meio ambiente eram consideradas besteiras. Invenção. Mentiras criadas para atrasar o progresso.

E embora as pesquisas, com dados, mostrassem nosso fatídico fim - não que seríamos extintos, mas que entraríamos em uma grande recessão mundial - a Internet ajudou a rapidamente descredita-las. "Lixo comunista", o bordão umbilical da nova sociedade, que virou chacota na boca daqueles que se encontravam a margem - foi assim que chamaram as pesquisas, no início.

"Lixo comunista"

Mesmo que a grande maioria da população não desse atenção a extinção das abelhas, era inegável um sentimento que crescia dentro pensamento comum:

"Nossa! Esse tempo tá muito doido!"

Nesse momento, inconscientemente, começamos a nos dar conta de que havia algo de errado.

As temperaturas estavam um caos. Quedas bruscas e subidas repentinas dentro da mesma semana. Dias muito quentes e noites muito frias. Chuvas. Muitas chuvas. Em todos os lugares. De água e de raios.

Circularam fotos da terra, recém tiradas do espaço. Era uma grande esfera cinzenta. Pouco se via do azul. As nuvens tempestuosas passaram a tomar conta do globo. O último abraço da mãe naturaza.

"Que tempo doido!"

Durou quase 40 anos, essa sensação sorrateira que percorria silenciosa o senso comum. Não era a piada que surgia com facilidade, ou a conversa de mesa de bar - era o olhar de esguelha, reprimido, rápido como uma bala, através da janela do escritório quando a cortina de água despencava do céu - e o pensamento congelava por um microsegundo.

"Meu Deus..."

Não era o assunto que estava toda semana nos telejornais, ou bombando nas redes sociais. Era a encolhida discreta de ombros, sutil como um soluço, quando o trovão estoura tão perto, que parece que estourou dentro da sua cabeça.

"Meu Deus..."

Era aquele arrepio que sobe pela lateral do braço, quando você sai no sol do meio dia, em um dia de verão - quente feito uma estufa, você se sente mergulhado em uma espécie de líquido amniótico invisível, enquanto o arrepio sobe pelos ombros e chega à nuca.

"Meu Deus..."

Esse era o sentimento comum não verbalizado que corria pela nossa sociedade, que começara a aparecer por volta dos anos 2000, quando o planeta, já sutilmente, dava sinais de exaustão.

Após 2025, com as abelhas, o processo de mudança climática na terra foi acelerado em muitos anos. Com a força polinizadores de 70% da nossa biodiversidade extinta, as florestas entraram em ritmo catastrófico de desaparecimento.

Na época chamaram de Marco Zero. Era o ponto irreversível, de onde a natureza não teria mais como se recuperar.

Com menores florestas, as nascentes de muitos e muitos rios secaram. O que atingiu em cheio o mundo como ele estava configurado.

Nao estavamos preparados. Como viveríamos sem água?

Era só olharmos ao redor. Tudo precisava de água, não era somente o que ingeríamos. Da carne ou dos vegetais que comíamos, à roupa que vestiamos - absolutamente tudo ao nosso redor necessitava de água para existir.

Só que a água estava acabando.

Tudo isso em um planeta com cerca de 13 bilhões de habitantes.

13 bilhões.

Com o passar dos anos, a fome se tornou o mal do século. Criar gado consomia água. Plantar batata também.

Pra gerar energia elétrica precisava, em alguns países, majoritáriamente de água. Os que não necessitavam da água para eletricidade, sentiram o efeito da crise econômica mundial e não conseguiram sustentar suas usinas radioativas.

A crise econômica. Avassaladora.

Os países, em determinado momento, não tinham mais estrutura para zelar pelas relações internacionais. Nada disso importava mais. Todos voltaram sua atenção para dentro de si e para a zona de guerra e morte que tinham se transformado.

Eram muitas pessoas passando fome e morrendo. No meio de um novo mundo quente e hostil.

Então lembramos das abelhas e do motivo pelo qual tudo tinha acontecido.

"Meu Deus..."

Todo esse rebuliço não se deu da noite pro dia. Os acontecimentos foram surgindo aos poucos, ao mesmo tempo em que os grupos dominantes percebiam que, se quiséssemos sobreviver, precisaríamos tomar medidas drásticas. Em nome da preservação da humanidade. E em nome de Deus.

"Meu Deus..."

Esse 'chamado' interno que todos nós fazemos, de nos pra nós mesmos, escondido dos holofotes e do conhecimento de qualquer outro ser humano na face da terra - esse lamento, que as vezes carrega uma mão no peito - é a comprovação do quanto a religião tinha uma influência potente nas nossas vidas. Até para os ateus. Porque fomos construídos todos em cima da mesma base social. Nossos medos são todos fabricados igualmente - em cima de certo e errado. O que leva ao pecado. E que leva a religião e a Deus.

"Meu Deus..."

Ao redor do planeta, os militares perceberam que seriam os únicos capazes de executar essa vil tarefa em nome de todos. E de Deus.

Os regimes militares se espalharam como rastro de pólvora, ao redor do mundo. Começou com a Rússia. Em cinco anos, metade da Europa já tinha adotado suas próprias versões de regime militar. Portugal, Franca, Reino Unido, Itália, Noruega.

Alguns países permaneceram resistentes. Alemanha era um deles.

Essa onda de opressão só deu certo porque, instintivamente, a humanidade passou a associar a desgraça do novo mundo, à um castigo divino. Só podia ser Deus a mandar um castigo como aquele.

Não mais as abelhas.

A partir de então, o resto ficou fácil. Deus estava acima de tudo. Os militares controlavam à todos.

O medo silenciou as bocas. Se não era o medo de Deus, era o medo do sistema e quem ia contra morria. Tinha terminado a era do diálogo.

Os Violáveis. Era assim que muitos pensavam que nos chamariamos no futuro, quando fossem contar a história. Aqueles que se permitiram violar. Transgressores.

No meio do caos socio-econômico que nos encontrávamos, despedaçados e destruídos, não tínhamos alternativa.

Não tinha comida pra todos.

E tinha 'gente' sobrando.

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