O som fino do raspar de metal com metal. Allan escutava esse som desde que se lembrava gente... Desde bebê, talvez. De outra vida, às vezes tinha impressão.
E a cada vez que a faca deslizava velozmente pela chaira, uma cena diferente piscava como um flash, à frente de seus olhos.
Seu pai chegando em casa após um dia de trabalho.
"Shin"
A alegria de sua mãe ao ir buscá-lo na creche.
"Shinn"
Churrasco no final de semana.
"Shinn"
O cheiro de grama molhada no quintal.
"Shinnn"
Banho de chuva na volta do parque.
"shhinnn"
A bicicleta nova do Natal.
"sshhinnn"
Verão na casa da tia Agda.
"sshhinnnn"
O cheiro da manga madura no pé.
"sshhhinnnn"
A chegada de Alphie.
"ssshhhinnnn"
O cinema do sábado à noite e a missa do domingo de manhã.
"ssshhhinnnnn"
O barulho do vento na copa das árvores.
"ssshhhhinnnnn"
Verônica.
"trinnm"
Allan levantou os olhos, retirado a força de seu transe matinal. Viu a cliente entrar, através de uma pequena janela retangular, enquanto a porta batia e acionava a campainha metálica pela segunda vez.
"Gado"
Largou a chaira e a faca ao lado da peça de carne recém retirada da embalagem e dirigiu-se a frente do açougue, lentamente.
"5:33. Isso é hora de estar acordada, velha? Como se você não viesse aqui 3 vezes na semana nos últimos 17 anos, entre 5:31 e 5:37, e não soubesse que até as 6:30 as peças ainda não estariam cortadas. Como se eu não soubesse que você responderá 'é pra garantir', enquanto mostra uma fileira putrida de dentes amarelados pela exposição constante a nicotina. Como se você não soubesse o desprezo que eu sinto por você e como se eu não soubesse o nojo que você sente por si mesma. Mas, mesmo assim, sorri. E vai decidir esperar aqui pelos próximos 57 minutos, enquanto eu trabalho as peças. Puxando assunto e imaginando que está me fazendo um favor, quando estará me submetendo a 57 minutos de tortura psicológica indescritível. Eu realmente odeio você, sua velha puta".
- Dia. - disse Allan, ao parar de frente o balcão.
- Bom dia, filho. - respondeu a velha.
- A senhora já sabe. - O rosto de Allan se contorceu em côncavo e ele mostrou os dentes ao esticar os cantos laterais da boca. Alguns chamariam de sorriso. Ele tinha certeza que não sorrira.
- Seis e meia, é verdade.
- 6 e 30. - ele concordou, ainda com o rosto contorcido.
- É pra garantir. - tinha sido a a vez da velha de contorcer o rosto.
Allan acenou com a cabeça e dirigiu-se novamente a bancada interna do açougue. Sua visão voltou a limitar-se à uma janela retangular de vidro.
- Belo dia, hoje, não?
Allan não respondeu. Era naquele momento que ele parava de escutar. A velha continuava falando até o momento em que recebesse sua carne, mas depois de 17 anos, ele já tinha desenvolvido seus próprios mecanismos. As vezes emitia um ruído. Era o máximo que se permitia fazer.
Passou o indicador e o dedo médio de uma mão por um dos vãos da peça de carne a sua frente, enquanto a outra mão segurava a faca firmemente.
"Músculo. Músculo. Tendão".
Percebia no toque onde deveria cortar. Precisava separar a costela da pele e deixar somente os pedaços mais nobres de carne. A faca precisa deixou um filete de sangue escorrendo, ao tracar seu caminho. Allan trabalhava com leveza.
"Primeiro a pele, mas tem que ter cuidado. É bem fácil errar a camada mais superficial de gordura e tirar parte importante da peça, essencial ao sabor. Depois as partes de gordura mais espessa. Por dentro não precisa, o frigorefico já manda limpo. E tem pouca carne por dentro. Essa voltinha é complexa. Tem que ter cuidado".
- E, aí, o Martin disse 'É mesmo, dona Verônica? Quem diria que aquelas pernas gordas iriam aguentar!?' - disse a velha, e caiu na gargalhada.
"Verônica".
- Peito mesmo? - Allan carregava um pacote de 1 kilo de carne de peito.
- Sim, querido, 1 kilo.
- Fica 321.
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Éden
HorrorA extinção das abelhas foi um marco na história da humanidade. Pouco se falou do assunto nas redes sociais da época até que ele fosse irreversível. E quando noticiado, o país estava efervecendo em uma forte onda conservadora. As abelhas não eram im...