Açougue 1:3

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Allan trabalhava todos os dias, das 6h às 20h, sem folgas, feriados ou finais de semana. Eram raras as ocasiões em que não precisava abrir o açougue. E as poucas, todas religiosas.

Ele era um Açougueiro de Deus. Era esse o nome dado aos novos açougueiros que surgiram depois do Corte. Poucos e seletos, estes fariam parte dessa nova engrenagem do novo mundo que, em troca de seu trabalho, ganhariam algumas regalias.

Nao serem perseguidos, era uma delas.

O corte foi a data em que o governo brasileiro assinou o AI-18, Ato Institucional que retornou o poder para as mãos das forças armadas, como em 64.

"... Só que repaginado. Não era coisa de amadores, como aqueles outros vermes tinham feito no passado. Esse foi coisa fina. Muito bem pensada, muito bem planejada. Se aproveitaram da crise. As abelhas, e todas aquelas merdas que não saiam da TV e das redes sociais".

Allan virou a placa na frente do açougue para "FECHADO", gesto automático de todos os dias, as 12h - quando ele teria 30 minutos de descanso -, mal se dando conta que as pessoas nunca respeitavam a placa. A velha de hoje era um sinal disso. Não raro, ele voltava de seu 'descanso' com uma fila de clientes parados dentro da loja, indignados pela demora no atendimento.

"Açougueiro de Deus. Bela bosta", pensava enquanto virava-se para iniciar seu 'descanso'. "30 minutos. E eu sou um dos privilegiados".

O AI-18, além de reestabelecer o poder de governo dos militares, lhes dava poder de governo acima da religião. Ou seja.

"Não tinha escolha, não! Era uma coisa muito doida, o que tava rolando. Perseguições e mortes eram usuais. Todos os dias se ouvia falar de alguém que tinha sumido. Não pulava um. E o Cristo era o único que podia reinar. Criança mimada. Pena que nunca voltou pra falar por si, então usaram seu nome. Pra mim carrega a culpa igual. Por omissão".

Qualquer manifestação religiosa fora dos templos era considerada alta traição e os acusados não tinham direito de defesa. Havia sido criada a Instituição da Família, que através de regras claras limitava esse conceito, incluindo restrição severa de direitos àqueles que não seguissem o manual, e possível pena de morte, aos que se mostrassem irrecuperáveis.

Quem assinava as sentenças, eram os Ministros de Deus. Figuras criadas pra julgar quem cometesse crimes de leso Família e seus pilares fundamentais.

"Retorno do Golpe Militar com autoridade sobre a igreja, e 'glimpses' de 1600, quando a Caça às Bruxas estava bombando. Foi biscoito fino".

O enforcamento veio através de Ato Complementar, que o reinaugurava como punição digna para a pena de morte. 'Punição digna' era, inclusive, mencionado no ato de sanção.

"Summis desiderantes affectibus".

Allan se recordava de toda a história. Sempre fora apaixonado pelo passado e, muito antes de criarem leis rígidas sob os livros e sob a leitura, ele já há muito os tinha consumido. A partir daí ele viveu a história. Sempre procurava se informar, através dos jornais impressos, uma vez que a TV e a Internet deixaram de existir para os pobres. Allan os lia na medida que algum cliente lhe dava um, como presente. Ou quando os entregadores traziam. Sempre havia uma forma de manter-se a par dos assuntos.

Ele voltou da cozinha com uma pequena faca pontiaguda. A lâmina não tinha o comprimento maior do que a extensão de um dedo. Dirigiu-se a um dos cantos escuros do quarto, onde jazia uma almofada no chão de piso sujo e manchado.

Tirou toda a roupa. Ajoelhou-se. A faca firmamente segura na mão direita.

"Mente podre! Merda, suja, imunda..."

Lentamente, Allan abriu um pequeno corte em um lugar aleatório do corpo. Tomava o cuidado para que nunca fosse um lugar visível. Geralmente era na base das costas, próximo às nádegas.

Um fio de sangue escorreu pelo seu coxi.

"Corpo sujo, fétido, vendido, sem alma..."

Mais um corte. Lento e preciso. Próximo ao anterior. Um novo filete de sangue uniu-se ao primeiro, enquanto ambos desciam, de mãos dadas, a região anal.

"O preço da morte. O preço do consumo da carne. Da morte, a carne..."

Outro corte. Com a terceira linha de sangue escorrendo e se juntando as outra duas, logo as gotículas começaram a pingar no assoalho sujo e manchado de madeira. O sangue era de um vermelho acinzentado.

Allan seguiu seu ritual ao longo de 13 cortes. Os últimos, trançados por cima dos primeiros, que já estavam secando e voltavam a se abrir. No chão acumulava-se uma pequena poça de um vermelho sujo. Opaco. Que logo se encaixaria como parte integrante do assoalho.

Permaneceu imóvel, sangrando, até que o despertado tocou. Próximo a almofada onde se ajoelhara, havia uma toalha suja. Allan usou-a para limpar o sangue das costas e a colocou de volta no mesmo lugar. Ele a trocava uma vez por semana. Apenas. Não tinha água pra esbanjar.

"Não tem agua pra nada nessa merda".

Banho, ele tomava um na semana. Quando economizava.

Vestiu as roupas, desligou o despertador e voltou-se para dentro do açougue, pela porta traseira que tinha conexão com sua casa.

"Gado".

Pelo menos 8 pessoas se acumulavam na frente do balcão refrigerado de atendimento. A velha de logo cedo também voltará.

Allan retorceu seu rosto em côncavo, mostrando os dentes ao elevar as laterais da boca.

- Tarde.

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