Vejo você amanhã?

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Terapeuta: Quanto tempo estamos nisso?

J: Não sou eu quem deveria perguntar? Quero dizer, quanto tempo já se passou? dois, três anos? E eu pensando que estava melhorando.

Terapeuta: Voltou a tomar teus remédios?

J: O psiquiatra não estava brincando quando disse que não posso ficar sem eles...Nem sem um terapeuta.

Terapeuta: Bem, eu estou aqui.

J: Você continua ouvindo a mesma ladainha de todos esses anos, até eu estou cansado de mim mesmo tocando neste assunto.

Terapeuta: Não é algo que esquecemos facilmente.

J: Mas já está na hora, não acha? Não posso viver minha vida com isto em mente.

Terapeuta: Não acha que perdoando a si mesmo ajudaria?

J: Se esse for o caso, viverei com isso pelo resto da vida.

Terapeuta: Não foi totalmente sua culpa, uma parte sim, mas não totalmente. A culpa nunca é totalmente de um.

J: Pelo menos você é sincero.

Terapeuta: Quando aconteceu?

J: O que?

Terapeuta: Você sabe.

J: Desejas dizer o início do fim? Não tenho certeza. 

 Terapeuta: Se assim o colocas. 

 J: Não sei ao certo onde ou quando me apaixonei por ele, talvez tenha sido quando o vi, mas achei que fosse apenas mais uma crise de ansiedade causada pela falta de Sertralina. 

 Terapeuta: Faz sentido. 

 J: Ele sorria bastante, quem vive sorrindo? Ele também foi a primeira pessoa a chorar ao ler um poema meu. 

 Terapeuta: Continuas a escrever?

 J: Às vezes sim, não tanto como antes. 

 Terapeuta: E aquela banda? Conseguiste voltar a ouvi-la?

 J: É irônico como essa droga passou a fazer sucesso do nada. Talvez seja o universo querendo me derrubar. 

 Terapeuta: Ou talvez ela sempre tenha estado lá, mas agora passaste a prestar mais atenção.

J: Era uma banda considerada de baixa qualidade, um gosto peculiar que eu possuía por esse estilo musical. Nunca compreendi o motivo de ter passado a apreciar aquela melodia repetitiva dos anos 90. Isso não impediu que os discos quebrados  mais tarde. Ele não conseguia ouvi-los sem chorar, enquanto eu passei a vê-los apenas como uma banda medíocre. 

 Terapeuta: Mesmo agora, ela deixando de ser ruim e se tornando a preferida dos jovens. 

 J: Você sabe como os adolescentes são, eles ressuscitam coisas e, quando menos esperamos, se torna a nova tendência da moda. 

 Terapeuta: E quanto ao retrato? 

 J: Você quer saber se já me desfiz dele? 

 Terapeuta: Na última sessão, você me disse que era isso que faria. 

 J: Eu sou péssimo em cumprir minha palavra, não é mesmo? Bem, ele ainda está ali, para me lembrar que um dia tive algo com o qual me importava. 

J: Não é como se eu me sentisse bem, mas algo me indica que se eu me desfizer da imagem dele, ficarei em situação ainda pior. E, além disso, ao visualizar seu retrato, eu consigo recordar o quão efêmera é a felicidade, como algo instantâneo, durando apenas alguns breves segundos. Será que sou um masoquista?

Terapeuta: Todos nós somos um pouco masoquistas.

J: Apenas suspeito que tenho ultrapassado os limites.

Terapeuta: Quando você finalmente percebeu o quanto o amava, o que poderia me dizer?

J: É algo complexo, eu não consigo compreender esse tal de amor, é como se mil raios rompessem os quatro cantos de um mundo dentro do meu coração.

Terapeuta: Para você, isso faz sentido?

J: Você me pediu para explicar algo sem sentido, então eu apenas ofereci uma resposta que fosse condizente. Eu já lhe contei sobre a alucinação que tive em certa noite?

Terapeuta: Não, mas seria bom ouvir.

J: Juro que ouvi a voz dele no meio da noite, e antes que percebesse, estava encarando-o. "Você voltou!" foi a primeira coisa que disse. Logo percebi que era a parede com quem estava falando! Tudo não passou de uma maldita fantasia causada por doses excessivas de uísque misturado com ilusões de um possível retorno dele.

Terapeuta: Ele não vai voltar.

J: Você é bem sincero, hein?

Terapeuta: Às vezes, essa é a melhor abordagem.

J: Acho que é como o efeito borboleta.

Terapeuta: Continue...

J: Talvez ele e eu devamos ser infelizes. Talvez, nos raros momentos em que somos felizes, ocorra um desastre em algum lugar do mundo.

Terapeuta: Você acredita nisso?

J: Tenho acreditado em muitas coisas ultimamente. Já te contei a última coisa que ele me disse antes de partir?

Terapeuta: Sim, mas conte novamente. Desabafe.

J: Ele disse que eu não lhe dava atenção, que eu era frio demais, que não me importava...

Terapeuta: você concorda com isso?

J: Eu sempre fui um tanto estranho, mas sempre tentei, realmente fiz o meu melhor. Já lhe falei antes, tenho um pequeno problema ao lidar com multidões, fico muito agitado, sinto que vou desmaiar a qualquer momento. No entanto, numa noite, eu peguei meu casaco e saí pela rua, em busca dele. Cruzei com várias pessoas pelo caminho, minha mente estava tão focada nele que esqueci a vontade de surtar perto de um monte de desconhecidos. Esse cretino conseguiu alcançar tal feito.

Terapeuta: Em determinados momentos, precisamos compreender que gostar de alguém não significa necessariamente que ficaremos juntos. Devemos nos satisfazer apenas amando-o em total solidão. Por hoje, a nossa sessão acabou.

J: Compreendi.

Terapeuta: Vejo você amanhã?

J: Não. Adeus.

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