— Ele abriu fogo contra uma família toda as nove da noite, todos estavam na mesa de jantar. Dia: 5 de setembro de 2002, sem sobreviventes blá blá blá...
Eu lia sobre o caso várias vezes antes de ficar cara a cara com o assassino que, segundo todos os moradores do local, assassinou uma família de bem sem pensar nas consequências de seus atos. Aquilo já tinha virado algo comum para mim, era o meu trabalho, uma avaliação psicológica antes de qualquer julgamento era essencial. Isso ajudaria a decidirem se era caso de passar a boa parte da vida em uma instituição psiquiátrica ou na cadeia.
— David Carter — Aquele nome não me era estranho, mas, eu tentava não pensar muito sobre isso.
Arrumei bem os papéis em minha pasta quando ouvi o guarda pedir para o acompanhar. Pude sentir o clima pesado que aquele local passava enquanto tento arrumar bem meu terno antes de prosseguir, minha aparência era de extrema importância nessas ocasiões. Eu tinha uma hora para conversar e pelo menos tentar entrar na cabeça do homem acusado de tal atrocidade, pelo menos esperava que ele não fosse mais um daqueles que ficam tentando ter um ar enigmático, isto era extremamente chato.
Fui levado a uma pequena sala com apenas duas cadeiras, uma de cada lado com uma pequena mesa no meio. David já estava lá com as mãos algemadas. A primeira coisa que notei foram seus olhos, estes cansados e coberto de olheiras.
Respirei fundo e sentei de frente para ele, podendo ouvir o guarda sussurrar algo antes de nos deixar sozinhos naquela pequena sala de paredes cinzas. Acima, a forte luz da lâmpada piscava em certos momentos, deixando o clima mais sombrio ainda.
Tentando passar um sentimento de tranquilidade, coloco cuidadosamente minha pasta sobre a mesa e retiro alguns papéis, tento não me incomodar com o movimento que David fazia com sua perna direita, revelando uma certa ansiedade.
— David Carter, certo? Estou aqui para sua avaliação psicológica.
— Claro, claro — Seus lábios formaram um pequeno sorriso — Será ótimo para eles que eu seja um atirador louco.
Carter me passava uma estranha sensação a qual eu não saberia explicar. Fiquei várias vezes de frente para assassinos, estupradores, pedófilos e toda a escória da sociedade, sei bem o quanto intimidador eles poderiam ser, mas, David era diferente, não que ele não conseguisse passar medo se quisesse, deveria ter pelo menos 1,87 de altura, sua barba estava mal feita e pude ver algumas tatuagens em seu antebraço, porém, apenas não conseguia dizer o por que meu modo alerta parecia desativado em sua presença.
— Vamos ver...David Carter, 47 anos, nasceu e cresceu em uma família considerada boa, nunca se envolveu em outros crimes e sempre foi considerado bom filho, pai e marido. Aqui também diz que nunca demonstrou comportamento agressivo. Quatro vítimas, todas da família Jenkins. Sr e Sra Jenkins e seus dois filhos, Harry Jenkins e Gary Jenkins. Mortos a tiros enquanto jantavam sem quaisquer preocupação.
— Exatamente — Dizia ele, não tendo problemas em negar seu crime.
— Sr Carter, parece que não tem problemas em falar sobre o assunto. Apenas quero que me explique em detalhes o que aconteceu para que um homem, visto como um cidadão exemplar, cometesse algo desse tipo.
David se ajeitava em sua cadeira, parecia pronto para contar sua versão da história.
— Não se passou tanto tempo assim, Sr psiquiatra. É tão fácil esquecer daquela manhã de 1998?
— 1998? — Não entendia onde ele queria chegar com aquilo.
— Ah! Eu me esqueci! A mídia não passou quase nada a respeito, claro que nem você e nem o resto das pessoas lembra do fatídico dia de 10 de março de 1998. Gosto de chamar esse dia como " O dia em que morri".
— Seja mais específico, Sr Carter, assim fica difícil entender qual o seu ponto.
Foi então que ouvi atentamente toda sua história, não consegui prestar atenção em mais nada, apenas na cansada voz de David misturada com uma enorme tristeza por recordar os eventos ocorrido no final dos anos noventa.
— 1998, dia primeiro de fevereiro. Eu, David Eric Carter, era apenas um homem que amava a esposa e filhos. Pensar que, nunca mais poderei voltar para casa e sentir o cheiro do jantar que minha amável esposa preparou, faz meu coração doer. E meus filhos, meus maravilhoso e amáveis filhos, crianças adoráveis, nunca foram de causar problemas. Edward ,o mais velho, tinha quinze anos, depois Agatha de dez, Mark de oito e a pequena Carrie de apenas alguns meses. Poderia ser mais um dia normal, se não fosse o fato do sumiço de Edward. Eu tinha acabado de voltar do trabalho, eram oito horas da noite quando passei pela porta e minha esposa correu em minha direção, perguntando se eu tinha alguma ideia onde nosso pequeno Ed tinha se metido. Não era de seu feitio sumir assim, sem avisar para onde iria, ele era um bom garoto, Sr psiquiatra, garotos como ele não se vê nesses tempos, você entende? Se passaram vinte quatro horas até a polícia finalmente decidi montar uma equipe de busca. Nunca entendi essa coisa, em vinte quatro horas muita desgraça pode acontecer. As buscas duraram dias, fizemos cartazes, perguntamos aos vizinhos, colegas de escola, ninguém tinha ideia de onde Ed poderia estar. Nunca perdemos a esperança, para nós, ele iria passar por aquela porta a qualquer momento, toda vez que o cachorro corria até o portão, eu rezava para vê-lo parado ali, de volta para casa. Então, dez de março chegou junto a um telefonema. Eu vou lhe dizer uma coisa, não desejo para nenhuma mãe ou pai que seja chamado pela manhã para fazer o reconhecimento de um corpo e ver que se trata de seu filho. Foi naquele momento em que perdi meu gosto pela vida. Talvez, o que mais me assustou foi saber que ele tinha morrido a poucos dias. Não quero pensar no que ele sofreu na mão de seu assassino, mesmo descobrindo alguns detalhes dos exames mais tarde. Resolvi não entrar em detalhes com minha mulher, pensei que seria o melhor — Um suspiro de angústia quebrava sua história, mas ele se preparava para continuar sem pensar duas vezes — Eu não contarei para você, mas, você deve saber o que deve ter acontecido. Não existe crime perfeito, principalmente quando o idiota não sabe nem como esconder digitais. Richard Walter foi preso tempos depois, todas as provas apontavam para ele, com certeza seria perpétua ou pena de morte, não traria Ed de volta, mas pelo menos, viveríamos sem esse demônio pelas ruas da nossa pequena cidade. Entretanto, foi uma surpresa ver ele saltitando com sua liberdade dias depois. Não existe crime perfeito, Sr psiquiatra, mas gente corrupta tem de montes. Até mesmo conseguiram uma nova identidade para ele. Charles Jenkins...É um belo nome, não é? O mundo cheio de pessoas sujas e corruptas, demorou quatro anos até eu conseguir dinheiro suficiente para pagar um desses filhos da puta e conseguir uma informação sobre Richard. Fingi que faria uma viagem de trabalho, deixei toda minha família em casa e segui até a nova moradia do velho Walter. Ele não me reconheceu, eu disse que seria o seu novo vizinho, foi o que inventei na hora. Quando me convidou para entrar, ele estava pronto para jantar e eu pronto para pegar o revólver. Foram tiros certeiros, mas atirei mais um pouco, queria ter certeza que estavam todos mortos, não só ele, como seus frutos e aquela em que ele colocou sua semente.
Era a primeira vez em que eu não saberia muito o que comentar, faltava poucos dias para o julgamento, eu tinha que anotar bem sobre tudo aquilo que tinha ouvido e todos os seus gestos.
— Eu sinto falta dele, Sr psiquiatra. Apenas coloque que sou louco, um demônio, qualquer coisa. No final das contas, minha esposa já pediu divórcio e levou nossos filhos para longe de um pai como eu. Nada me resta, apenas a falta de todos os momentos antes de 1998, apenas a falta de Ed. No final...É só isso que resta.
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Em algum canto do mundo
Random"Em algum canto do mundo" são pequenos contos sobre pessoas tentando lidar com problemas e algumas situações bastante delicadas, tendo um leve toque sombrio. Em um conto, um homem sem um nome revelado tenta lidar com a perca de seu primeiro amor. Em...