— Acho que saiu um filme novo no cinema, deveríamos ir assistir — Ele soltava aquela do nada no ponto de ônibus, me deixando sem entender o que queria com aquilo.
Veja, ele não era fã de cinema, muito menos dos filmes que estavam a sair naqueles tempos, no começo do século XXI, porém, eu simplesmente concordava, não parecia uma ideia ruim.
Quando o ônibus finalmente chegou, ficamos calados todo o caminho até em casa, talvez não houvesse mais nada para ser dito.
Vivíamos dias complicados e confusos, não tinha muito o que fazer na maioria de minhas tardes, então, era comum sair com ele quase todos os dias em suas férias para jogar Tekken.
— King é o melhor! — Dizia animado, já vencendo o Chefe final.
Eu apenas sorria, observando bem seus gestos e reações, guardando bem em minha memória. Não passava em minha cabeça que momentos como esses, seriam preciosos. Eu não pensava muito que, um dia, aquilo seria só uma parte distante de mim, porém, quem pensa? É normal na maioria das situações, certo? Refletimos apenas quando tudo em nós fica totalmente esculhambado.
Esqueci até muitas coisas que não deveria, como quando ele acordava tão cedo que o céu ainda tinha uma estranha cor lilás.
Se vestia, tomava café e, antes de sair, me cobria com uma coberta e dava-me um beijo no rosto. Às vezes, eu o ligava no meio do dia para lhe pedir algo, raramente o ouvia reclamando sobre esse meu hábito de interromper seu trabalho com ligações idiotas. Quando a noite caia, eu saia de casa e me encontrava outra vez em um ponto de ônibus, pois um deles, o traria de volta para o lar. Ele sempre me trazia o que eu havia pedido, mesmo que demorasse um pouco mais para retornar.
Nos fins de semana, era comum me levantar ao som de uma música dos anos oitenta, uma forma ruim de acordar para alguns, mas eu adorava.
Eu também poderia me encontrar dentro de um carro, indo até um lugar distante em sua companhia, olhando o mundo por uma pequena janela, me deparando com um arco-íris. Eu nunca consegui ver outro depois disso.
"Eu quero esses dias de volta, não podem ser simplesmente uma miragem em minha mente provocativa, mostrando que não viverei assim outra vez. Jamais"
— Você é quem mais se parece comigo — Ele me disse certa vez — Somos solitários, guardamos nossos sentimentos e deixamos eles saírem apenas quando o sol já se encontra desaparecido.
Eu o amava, ainda o amo, porém, se parecer com ele era terrível. Posso afirmar que, uma parte dele já tinha morrido há muito tempo, por mais que doa tal afirmação.
Ele trapaceava até mesmo em jogos de tabuleiro, raramente conseguia fazer algo de maneira honesta. Acabei me acostumando com isso quando o tempo passava, a ponto de mostrar hábitos ruins também. Matava aula, fumava, me enchia de porcarias até sentir meu estômago reclamar, coisas da adolescência.
— Não vai para a escola hoje?— Dizia, sendo notável a falta de interesse pelo assunto em sua voz.
— Não estou afim — Respondo com o mesmo desinteresse, o que fez ele dar de ombros.
Nossa estranha relação assim era, até o dia em que ele partiu. Não chorei, nem fiz baderna, era o inevitável dando as caras, achei até que este se atrasou um pouco. Mas, os pontos de ônibus até hoje são estranhos para mim, é triste, de certo modo.
"Naquele ônibus, ele nunca mais virá"
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Em algum canto do mundo
Random"Em algum canto do mundo" são pequenos contos sobre pessoas tentando lidar com problemas e algumas situações bastante delicadas, tendo um leve toque sombrio. Em um conto, um homem sem um nome revelado tenta lidar com a perca de seu primeiro amor. Em...