Você vai me amar um dia?

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— Somos um bando de fracassados tentando ser alguém.

Uma tragada em seu cigarro bastava para Katie voltar ao seu estado natural, o que significava que ela xingaria nossa família nas próximas horas. Eu poderia interrompe-la, dizer o quanto ela estava sendo exagerada, dizer que a família, apesar de seus inúmeros defeitos, não era tão ruim assim, entretanto, falar isso era uma maneira de me enganar. Nem mesmo o fato de mamãe se encontrar no hospital nos fez ficar mais compreensíveis com as questões do passado. Veja bem, mamãe estava sempre com um homem diferente desde que nós entendemos como gente. Katie e eu não éramos filhos do mesmo pai, tornando nós dois meio irmãos. O pai de Katie saiu de casa assim que mamãe ficou gravida. Depois, quando minha meia irmã tinha 3 anos, minha progenitora entrou em um relacionamento com um homem mais jovem, meu pai. Me lembro de alguns momentos marcantes ao lado dele em minha infância. Papai me levava para escola pela manhã, pegávamos um caminho longo e conversamos bastante. Ele me colocava em seus ombros e eu poderia bagunçar seus cabelos negros pelo resto da caminhada. Quando me buscava para me levar até em casa, sempre parávamos em uma sorveteria, ele comprava qualquer sabor que eu quisesse. Um noite, antes de dormir, papai tirou uma barra de chocolate do bolso, dividiu, me dando o pedaço maior. Terminamos de comer e ganhei um beijo de boa noite. O vendo sair pela porta, eu não sabia, mas eu não o veria mais em minha infância. Suas coisas não estavam mais em lugar nenhum quando amanheceu, tinha ido sem nem dizer Adeus. Foi então, que coloquei aquilo em minha cabeça.

"Papai me odiava"

Me tornei um garoto estranho após esses acontecimentos. Aprendi a ir até a escola e a voltar sozinho, já que mamãe nunca foi do tipo muito presente. Também fui aprendendo a preparar minhas próprias refeições com o passar do tempo. Katie se tornou uma depressiva que passava uma boa parte de seus dias trancada no quarto. Nossa mãe continuou com vários homens ao ponto de em várias manhãs, quando acordávamos e sentávamos na mesa do café, víamos sempre um desconhecido.

"Quem diabos é você?" Era o que perguntávamos sempre.

— Então, como estão as coisas com o seu pai, Cole?

Katie interrompia meus pensamentos por uns instantes ao tocar naquele assunto.

— Você sabe bem — Dou um sorriso fraco.

Demorou bastante para mamãe finalmente dizer onde meu pai foi. Me encontrar com ele, eu tendo agora 22 anos, foi um pouco estranho. Descobri que meu pai não aguentava mais minha mãe, e o fato dele ainda ser jovem naqueles tempos, o fez não aguentar a pressão de um relacionamento problemático e a responsabilidade de cuidar de mim. Claro que isso não era desculpa para abandonar seu filho com uma mulher emocionalmente instável.

— Você conseguiu perdoa-lo? — Katie não parecia muito interessada neste assunto pelo seu tom de voz, mas ela demonstrava pelo menos tentar se importar um pouco mais sobre os problemas de seu irmãozinho mais novo.

— Eu não sei. Me pergunto se ele realmente me ama — Aquilo saia meio que sem querer, o que acabou revelando a ela quais eram as minhas preocupações.

Então, silencio. Eu já tinha contado uma parte a ela sobre os acontecimentos da semana passada, quando resolvi passar a noite na casa de meu pai. Iriamos colocar o papo em dia, tínhamos nos aproximado um pouco mais, mesmo fazendo apenas dois meses que se reencontramos. Eu tinha me esquecido o quanto encantador era aquele cara, ao ponto do ódio em meu coração se desvanecer a cada olhar que trocávamos. Eu teria me esquecido do olhar carinhoso de meu pai? A raiva tinha me cegado a tal ponto? Eu não poderia me culpar totalmente por conta disso, foi ele que resolveu ir embora no final das contas. Relaxamos no sofá e o ouvi falar o quanto cresci em sua ausência. Comentei a ele sobre termos uma aparência parecida, o fazendo rir e concordar comigo.

"Você se parece comigo, por isso é um rapaz tão bonito"

Meu pai falar aquilo me pegou de surpresa, me fazendo ficar vermelho igual a um pimentão. Eu queria que ele me amasse, que quisesse ficar comigo. Talvez por isso, eu não me importei quando o mais velho sentou mais perto de mim, nem quando sua mão deslizou sobre minha coxa até meu abdômen, aos poucos espreitando-se por dentro de minha camiseta. Eu necessitava do seu amor, não importava de qual maneira fosse. Se papai não me amava como seu filho, poderia me amar de outra maneira? Minha mente se tornou um breu, eu poderia apenas ouvir o som de sua suave voz, me fazendo esquecer o passado e todas as angustias guardadas dentro de mim

Cole...Cole...Cole...

— COLE! — Katie gritava

— O-o que? — Falo, um pouco desnorteado

— Você voltou a pensar naquilo que me contou? — Katie parecia preocupada

— Sim...Eu não consigo esquecer

— Vocês, bem...Chegaram até o fim? — Katie pergunta, no fundo sabendo a resposta.

— Sim...

Outra vez silêncio. Ela novamente dar uma boa tragada no seu cigarro, deixando uma parte da fumaça entrar em seus pulmões e outra parte sair por sua boca entreaberta.

— Olha — Ela continua —, Eu não sou uma moralista, você me conhece bem, mas Cole, isso é um assunto complicado até mesmo para mim. Você não pretende falar isso para a mamãe não é?

— Claro que não! Já basta o câncer que ela tem que lidar agora. Eu nunca poderia dizer isso para ela. — Deixo um longo suspiro sair

Minha conversa com Katie era interrompida pelo toque de meu celular. Eu já sabia muito bem sobre o que se tratava. Peço licença a minha irmã para sair. Como eu suspeitava, era ele, me pedindo para nos encontrarmos em sua casa. Em algum momento, no colegial, uma pessoa me disse que eu era aquela parte do dia, entre a tarde e o anoitecer, entre a madrugada e o amanhecer. Um momento claro demais para ser noite e escuro demais para ser dia. Era isso que eu era, algo que ninguém saberia dizer. Eu era diferente, meus sentimentos não eram considerados normais. Era impossível esquecer a sensação de ser amado, e o quão maravilhoso foi o que aconteceu, e quando algo se torna assim, tão maravilhoso e prazeroso, nós passamos a chamar de pecado. Me despedi de Katie, e segui até a casa daquele homem. Papai me amava, e isso bastava, por mais que a minha sanidade esteja evaporando. O que posso dizer? Eu apenas faço parte de uma família complicada. 

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