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 Ontem, matei.

Sinto ainda uma respiração ofegante a bater-me no pescoço. O sangue quente parece que ainda me escorre nas mãos, parece que se junta com o meu, borbulhando, ambos dentro de mim, com a imensa adrenalina que me afoga. 

Ela libertava pequenas lágrimas enquanto o pequeno punhal se entra no peito, de forma leve e vagarosa. O castanho dos seus olhos desaparecia, aos poucos, à medida que o negro, escondido neles, se dilatava. A boca abria-se desesperadamente tentando devorar o ar que lhe faltava. Por fim, um último espasmo veio apoderar-se do  corpo, os  olhos gritavam por socorro e ela, incapaz, lançava, então, um último suspiro estridente.

Eram já três meses sem matar que levava na pele. Sentia-me pesado, angustiado e insatisfeito. Não conseguia dormir, tudo me causava pânico, até o simples voar de uma mosca. Três meses sem dormir em condições. O que perdi em tempo de sono, ganhei em tempo de leitura. Afinal, era rotina, quando as insónias me assaltavam, ir para a biblioteca cá de casa, escolher um livro, servir um uísque e uma boa música e ficava assim, toda a noite. Mas, três meses de abstinência chegaram, finalmente, ao fim.

Ontem dormi com os anjos!

Matar dispersa-me os sentidos.

Tomei um banho, depois de me desfazer das roupas ensanguentadas. O calor que se fazia sentir estava a matar-me e eu sentia-me dorido, a mulher deu alguma luta. Tudo o que eu queria naquele momento era um banho refrescante. 

Tinha chegado já tarde a casa, mas isso não faria diferença. Sou só. Vivo sozinho na mansão. 

Depois do banho, enrolado na toalha, abri a garrafa de uísque velho, quase no fim, afinal aquele era só para ocasiões especiais e ontem era uma dessas ocasiões. Já não matava desde Dezembro. Peguei na garrafa e servi-me. Levantei o copo em direcção aos livros e fechei os olhos, juntando, à minha volta, todos os meus fantasmas e demónios.

-Sirvam-se! Hoje é por minha conta! Vamos! Um brinde! Um brinde a mim...

Depois disto não se ouviram telintar os copos. Não se ouviram nem "hurras!", nem "vivas!". Ouviu-se o silêncio que definia a minha vida desde sempre. Ouviu-se a minha respiração. Ouviu-se um suspiro breve depois de um trago de uísque. Ouviu-se, por entre os dentes, "estou como novo!". E era verdade, estava como novo.

Poderia finalmente voltar a dormir. O peso que tinha fugiu e já respiro. Estou satisfeito. Quanto à angústia, essa morreu no momento em que eu cravei o punhal no peito daquela mulher de olhos castanhos. 

Dormi bem. Hoje é outro dia. Não tive pesadelos com pessoas vivas, não tive insónias. Acordei jovem e cheio de força, pronto, diria eu, para voltar a matar.

Sabem, ontem matei.

Matar; matar é doce, pois arranca-me da vida toda a amargura. E, deus, como eu gosto do sabor adocicado de matar!

Crónicas de um Serial KillerOnde histórias criam vida. Descubra agora