I. 1910

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— A SENHORITA queria me ver?
Eleanor olhou para a figura no meio da estufa abandonada, imóvel
contra a luz que vinha dos vidros barrados de sujeira, mofo, musgo, teias de aranha e excrementos de pássaros.

Há quanto tempo não abriam as portas daquele lugar? Ela sequer se lembrava se ainda havia uma chave. Tudo tinha sido trancado quando seu pai morrera e ela se casara. Quase quatro décadas depois, no entanto, nenhum vidro havia rachado; a estrutura de metal ainda
stava intacta, a tinta verde descascando, mas nenhum sinal de ferrugem nos
arcos que se cruzavam em cúpulas que imitavam as fortalezas dos marajás.

O aparentemente frágil castelo de vidro que seu pai tinha erguido por capricho

— que ele nunca soube administrar sozinho e que o marido de Eleanor nunca tivera o menor talento para manter- iria sobreviver a todos os seus descendentes por séculos e séculos.

Por entre plantas há muito reduzidas a pó, em meio ao cheiro de poeira e
vegetação decrépita, a imagem daquela moça de costas para Eleanor, usando um vestido azulado sujo de terra nas barras bordadas, parecia uma miragem.

Uma miragem muito arrumada, o cabelo castanho escuro preso em uma
trança que lhe batia na cintura, as mãos pequenas entrelaçadas no alto do peito.

Era uma visitante inesperada, vinda logo de manhã cedo, junto com o
frio que rasgava os campos com toda a força possível em um fim de inverno.

Eleanor estranhou, de qualquer forma, que alguém fosse vê-la. As
visitas, quando vinham, era para o filho, nunca para a dona da casa: quando o marido morrera, também ela deixara de existir diante dos olhos do mundo.

Equem faria tanta questão de ser recebida em meio a ruínas?

— Me perdoe se isso lhe assusta

— a visitante disse, cada palavra
claramente pronunciada devagar, como se estivesse aprendendo o idioma.

— Eu também estou assustada.
A jovem estendeu a mão para tocar um caule enegrecido que ainda
insistia em manter-se apesar das décadas.

Os dedos percorriam os espinhos
com cuidado, acariciando-os, deixando que as pontas afiadas lhe
atravessassem a pele acobreada. Eleanor levou as mãos à boca, mordendo os nós dos dedos, engasgada com lágrimas ao ver como o chão embaixo de seus pés se cobria subitamente de grama cor das esmeraldas, como as rosas se multiplicavam pelo caule que a garota tinha em mãos, como do nada as
glicínias se erguiam púrpuras e perfumadas pelos arcos das janelas, cobrindo metade da estrutura em questão de segundos: um teto vivo da cor preferida de
Eleanor.

Aquela gargalhada quase infantil, ecoando por toda a estufa, aquele
entusiasmo de quem não acredita no próprio truque, de quem ainda se
surpreende com a cor das plantas daquele lado do mundo: aquele som morava dentro do peito de Eleanor há décadas.

Era o que lhe consolara e lhe dera
forças nos piores dias. Aquele som que lhe tinha lhe arrancado sorrisos tristes quando ela se lembrava de quando tinha dezessete anos, aquele castelo de vidro era novo, recém-inventado, e o segredo de todas as coisas tinha lhe sido
revelado nas palavras daquela voz cálida que ria como um menino
impossível.

A moça enfim virou-se para trás, as mãos erguendo as barras do vestido.
Ela tinha o cabelo e os olhos claros daquele homem, mas o corpo ossudo das mulheres da família de Eleanor.

Uma mistura perfeita, medida e pesada com exatidão matemática, dos dois rios de sangue que compunham sua origem.

A jovem fez uma mesura e Eleanor viu, pendurada em seu pescoço comprido, a pequena medalha que ela tinha lhe deixado: um pedaço de seu mundo, para que sua filha conhecesse a aparência da mãe.

— Stella — Eleanor gaguejou. — É você.

Eleanor procurou um lenço nas dobras de sua saia, com medo de baixar o rosto e perder aquela figura mítica de vista. Stella se aproximou com passos curtos, erguendo os dedos com medo, parando muito perto dos ombros de Eleanor, como se ela também fosse uma árvore morta que poderia ser recuperada com um toque de sua mão.

— Ah, eu não queria fazê-la chorar — Stella disse, franzindo a testa e
tocando as lágrimas do rosto de Eleanor com leveza, curiosa ao ver como aquilo molhava sua pele.

— Achei que você iria ficar feliz em me ver.

— Estou feliz! Você não tem ideia! Nunca pensei que iria… Meu Deus,
você é mesmo a cara do seu pai!

— Sou? — franziu a testa de novo. — Isso é bom, não é? Era a voz dele. Era a voz dele em um tom feminino.

Em lágrimas, Eleanor abraçou a jovem sem estranhar que ela não retornasse o gesto, que mantivesse os braços erguidos, paralisados.

Não porque não sentisse a mesma emoção; era apenas porque Stella, muito provavelmente, não entendia como funcionava aquela demonstração de afeto.

Era mesmo filha dele: do homem que habitara a casa de vidro, tantos e tantos anos antes.

A Casa de Vidro  (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora