I. 1924

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OS CARCEREIROS DO PRESÍDIO DE de Crumlin Road, no norte de Belfast, tinham um método bem eficaz para emudecer até mesmo os prisioneiros mais ferozes: entravam nas celas sem aviso e mediam o tanto de corda que seria preciso para enforcá-los.

Faziam isso especialmente com os homens que ainda não tinham sido julgados, para que eles tivessem uma ideia do que lhe esperava se o juiz proferisse a sentença sem volta: um laço de nó móvel que decretaria o fim de seus dias.

Enforcamentos são uma ciência exata: o peso do futuro cadáver, a circunferência do pescoço, a constituição do corpo, tudo influencia o
resultado final. A ideia do executor era garantir que tudo terminasse o mais
rápido possível – não necessariamente sem dor para o condenado, como era
possível de concluir pelo modo como os carcereiros comentavam sobre os
homens que tinham dançado no cadafalso antes, pelo modo como tratavam os corpos enterrados sem nome nem prece nos fundos da prisão – iniciais e data de morte na parede o único indicativo de sua passagem pela Terra.

Para o desprazer dos carcereiros, no entanto, o homem na cela de
número dezoito nunca esboçava reação ao ter a corda de sisal apertada a
ponto de arrancar sangue; ele apenas mantinha os olhos castanhos focados em algo na distância, esperando em silêncio pelo fim da sessão de tortura,
indiferente aos comentários sobre sua aparência ou seu crime. Ele não atendia
mais pelo próprio nome, tampouco:

como os criminosos mais perigosos, ou os homens à beira da canonização, ele era mais conhecido por um apelido
que não fazia muito sentido, a não ser que você o conhecesse.

– Sendo bem honesto com o senhor… – o chefe dos carcereiros disse
naquela manhã para seu visitante uniformizado, enquanto cruzavam o
corredor central da cadeia. – O sujeito também ficou bem surpreso da

primeira vez que aconteceu. Quase chorou quando a gente limpou a cela,
feito criança quando perde o brinquedo.

– Mas aconteceu de novo no dia seguinte.

– E em todos os dias desde então, senhor. Três semanas, já. Não falha
nem um dia sequer. É por isso que achei melhor convocar ajuda. A gente até
chamou um padre, o senhor vê, mas o bicho lá não abriu a boca! O médico
daqui disse que ele não é nem surdo e nem mudo, entende direitinho o que
estamos dizendo. Então… O senhor vê… Ele não tem família, não tem
registro. Tudo que a gente achou foi que ele serviu o Exército. Se o senhor
diz que o conhece, então, né… Talvez consiga arrancar alguma coisa dele.

– Do que ele foi acusado?

– De ter matado um policial. Deve ter matado. O senhor vai ver, capitão
Hastings. É um demônio! Esses católicos encardidos sempre falam de anjos e
dos santos, mas são eles os piores tipos. Não se mexe, passa o dia olhando
pro teto como se já tivesse morrido. Não recebe visita, mal come. Tô dizendo,
o sujeito tem pacto com o tinhoso, ninguém acredita em mim. Deve estar
planejando nossa morte enquanto dorme, o filho da mãe.

Nigel Hastings não fez nenhum comentário, apenas observou o chefe
dos carcereiros abrir a pesada porta da cela.

O verde cegou os olhos do militar por um instante muito breve. Heras,
heras em todos os cantos: nas paredes, no teto, no chão, uma cortina que
tapava a luz do Sol que vinha da ridícula janela no alto do cômodo. Plantas se
acumulavam em grossas camadas: orquídeas em tons ofensivos de rosa e
camélias brancas como cera disputavam o espaço de quatro metros por dois
com cogumelos, capuchinhas e dentes-de-leão.

No centro da floresta, alto
demais para seu catre na cela, mãos trançadas atrás da nuca e olhos fechados, o homem apelidado de Jardineiro parecia dormir. O macacão de brim grosso contrastava com o rubro do cabelo que insistia em crescer em tufos mesmo após ter sido raspado, como era costume aos prisioneiros recém-chegados.

Ele ainda carregava em si as equimoses de sua passagem por uma delegacia
de bairro, semanas antes.

Nigel sentiu o estômago mareado, o suor frio a lhe empapar a nuca. Se
fechasse os olhos, poderia ouvir novamente o som dos morteiros, sentiria o cheiro de éter e gás mostarda em suas narinas, queimando-o uma vez mais.

E, acima de todas aquelas sensações, os rugidos que lhe acompanhavam em
pesadelos desde aquele amanhecer funesto, tantos anos antes.

A Casa de Vidro  (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora