IV. O HERDEIRO

54 6 0
                                    


STELLA OLHOU PARA a porcelana esverdeada sobre a toalha de renda
diante de si e depois para Eleanor.

A senhora ficou com pena do pânico no olhar claro da garota: era só chá da tarde, nem era uma refeição grande, mas para ela parecia um monstro indomável. Stella desviou o rosto, mordendo o lábio inferior com raiva por ter sido vista com medo; nisso ela era mais como Eleanor.

A senhora sentiu de novo a pontada no centro do peito, a marca da
tristeza.

— Pegue um pouco de cada vez. Se está deste lado do mundo, em algum
momento vai acabar sentindo fome.

— Você vai na frente e te imito. Pai disse que era um jeito bom de
aprender.

— Sem dúvida. — Eleanor serviu um pouco de chá para a garota.

— Eu tenho tantas perguntas...

— Se puder responder, respondo.

— Você… É como ele? Digo… As manchas e… — apontou o centro do
peito.

— Mais ou menos. Acho que as manchas estão aí. Não me olhei ainda
desde que atravessei o véu. Deve ter acontecido. E como você me gerou,
então tenho tudo o que você tem.

— Apontou o peito, imitando Eleanor.

— Embora ele não bata muito forte. Não tenho uso para esses órgãos do meu lado.

— Por que você não veio antes?

— Oh, não era hora. Precisava aprender muita coisa antes. E, bem… Há o problema dos ritos...E das classificações... Como você me explicaria para o homem com quem você dividia o leito? Ele não entenderia como você pôde ter me gerado sem ruína. Ou entenderia?

— Olhou para o reflexo da janela na
superfície do chá em sua xícara.

— Vim quando era para vir e é só.

— Sebastian ainda está vivo?

— Não como você se lembra dele. O corpo dele não aguenta mais a travessia. Isto é de beber, suponho?

— Apontou a xícara.

— Deus, você é filha dele mesmo... — Eleanor riu um pouco, aliviando
o nervoso que sentia

— Sim, Stella, é de beber. É chá. Só tome cuidado, está
quente.

Stella assentiu e ergueu a xícara pequena com as duas mãos, tomando a bebida em goles minúsculos e cuidadosos, como se testasse para ver se havia veneno no líquido.

A porta da sala bateu com força e Eleanor ergueu os olhos para algo atrás dos ombros de Stella, que quase derrubou a porcelana na mesa.

Era um homem muito alto, loiro e de olhos azuis como o pai, em um
uniforme de um tom triste de marrom. Stella parecia bem mais nova do que ele, e, no entanto, tinha vindo ao mundo quase cinco anos antes daquele militar que agora cumprimentava a mãe com um beijo no rosto.

— Visitas? — ele sorriu — Ora! Coisa rara por aqui.

— Meu filho, Mark — Eleanor estava rubra. — Esta é Stella. —
Ocorreu-lhe que apresentá-la com mais profundidade seria impossível.
Sebastian não tinha sobrenome. E, a rigor, Stella não existia, não para eles,
não entre eles.

— Encantado. — Mark estendera a mão sem fazer maiores comentários.
Stella, tremendo, imitou o gesto, franzindo a testa quando ele beijou o dorso de sua mão.

Depois sorriu, admirada com o rosto do homem, encarando-o
com aquela curiosidade que Eleanor conhecia melhor do que ninguém. Stella provavelmente era tão míope quanto Sebastian, um traço familiar que quase a fez rir.

— Vocês dois são parecidos — a jovem disse, por fim. — Tem o
mesmo tom de voz.

— Acha? — Mark sentou-se ao lado da mãe. — É a primeira vez que
ouço isso. E a que devemos a honra de sua visita, senhorita?

— Stella é filha de um grande amigo meu — Eleanor disse. — Está
visitando nosso país pela primeira vez.

— Oh, é mesmo? E o que está achando?

— Bem…Bem diferente! — Ela ficou subitamente vermelha. Aceitou a
mentira como uma forma de disfarce, não para si mas para a mãe. Mark era
muito bonito para um humano; tinha o ar de quem muito ouvia e pouco cedia.

Stella decidiu que gostava dele: parecia interessante como espécime, tão diferente da matriz que o gerara.
Eleanor mandou vir mais uma xícara à mesa.

Mark se ocupava pegando
sanduíches, em falar e falar para preencher o espaço vazio. Ele não se sentia constrangido, como a mãe se sentira antes, quando era Sebastian a lhe observar os movimentos.

Mark era filho de seu pai e o pai dele adorava ser observado, admirado. Não negava o sangue. Ele estava adorando aqueles olhos verdes que o viam como algo a ser estudado, analisado e decupado

— sem notar que Stella mal e mal o enxergava e que não tocara mais a comida à sua frente.

A Casa de Vidro  (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora