III. A NEVASCA

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QUANDO VEIO o Natal, a casa caiu em um silêncio doloroso e quase
constrangedor em comparação com a alegria que emanava do resto da vila.
Aurelius odiava a data: a esposa lhe fora arrancada pela morte naquela época.

Os empregados seguiram para a Missa do Galo na igreja da vila, o dono da
casa dormiu sem cear.

Eleanor ficou andando de um lado para o outro, desacorçoada: não queria ir à missa, mas tampouco queria o silêncio daquela casa.

Não queria enfeites ou preces, mas também se sentia chateada por não
ter sido convidada para bailes — odiava o luto que a obrigava àquele silêncio e distância, ao isolamento quase sanitário, como se o preto de suas vestes fosse contaminar todo o ambiente e fazer as pessoas lembrarem que também elas morreriam e logo.

Olhando pela janela, tarde da noite, o pai dormindo, os empregados em
suas acomodações, ela notou uma luz estranha dentro da estufa.

Estava nevando muito forte, mas dentro da casa de vidro o ar era quente e úmido como diziam que o verão era nas selvas. Sebastian estava sentado debaixo de uma árvore, acariciando um corvo branco pousado em seu antebraço.

As mangas da camisa estavam erguidas até os cotovelos, os pés,
descalços, revelavam cicatrizes e manchas profundas de um tom azulado que não existia na natureza humana.

As raposas agora andavam tranquilas pelas alamedas, livres e selvagens,
manchas de fogo pelo chão escuro. Eleanor olhou em volta quando entrou naestufa, embrulhada no casaco de pele de Aurelius: a luz não vinha só do lampião ao lado do jardineiro.

Parecia que cada planta naquele lado da estufa era um candelabro, fazendo o ambiente brilhar como um diamante. Ela respirou fundo, sentindo as barbatanas do corset mordendo sua pele, o perfume de flores que não eram daquele mundo atordoando seus sentidos.

O corvo grasnou, Sebastian olhou para a porta aberta. Ele não pareceu
assustado. Com um gesto, ele espantou o pássaro para fora da estufa, observando-o desaparecer entre os flocos de neve que desabavam com a força de uma maldição contra o vidro do teto.

As raposas também sumiram como
fumaça, não deixando nenhum traço de sua passagem. O lugar ficou
silencioso: nada senão o peso da respiração de ambos.

— Você não foi à missa — foi a única coisa que ocorreu a Eleanor para
dizer em seu choque.

— Não entendo de missas. — Ele voltou sua atenção para o lampião,
regulando a luz que vinha dele, como se aquele encontro fosse normal.

— Não entendo muito como funcionam esses templos. Que tipo de Deus é esse para quem vocês tanto oferecem palavras e velas e fumaça doce? Ele responde quando vocês falam com ele? Aqui, venha mais para perto.

Meus olhos não te enxergam se você fica longe.

— Você é míope? — Ela riu, passo após passo atravessando o jardim até
alcançá-lo — Então é por isso que fica encarando as coisas desse jeito?
Porque é muito mal-educado, você sabe. Ficar olhando as mulheres assim.

— Regras demais. Esse mundo de vocês tem regras demais. Como vocês
dão conta de lembrar de tudo?
Eleanor se aproximou da árvore.

O jardineiro a encarava, ainda sentado, as pernas compridas dobradas contra si. Ela ajeitou as saias com cuidado para sentar-se diante dele, sem conseguir desviar os olhos das manchas azuis.

Era como lápis-lazúli, veias brancas correndo pela superfície polida e suave, uma armadura contra a pele, pedindo para serem tocadas por dedos curiosos.

— Agora é você quem está encarando

— Sebastian disse com uma

risada, enquanto erguia o antebraço para que ela visse melhor as manchas

— As regras mudam só por que é você quem olha?

— Onde você conseguiu essas marcas?

— Oh, não se preocupe. Não é nada demais. Não estou aqui há tempo o
suficiente para que elas sumam por completo, só isso.

— Estar aqui tempo suficiente…. — Eleanor suspirou — Você é um
demônio, Sebastian?

— De novo esse nome! O homem mordomo me jogou água na cabeça
dizendo que eu era isso.

Acho que ele esperava que eu queimasse ou algo assim. Não penso mal dele. Ele estava intoxicado. Coisa encantadora, o corpo
humano... O quanto ele é capaz de fazer e desfazer e quão frágil ele é! Um copo de bebida estranha e toda a estrutura desmonta.

Aqueles termos não faziam sentido para ela, mas aquilo não parecia
mais importar. Ele era estranho, mas parecia que ali era mais rei do mundo do que ela jamais seria. De qualquer forma, era mais amigável do que ficar
dentro de casa, cercada pelas memórias e pelo frio. Estava confortável, talvez até demais, envolta pelo calor atrativo e reconfortante: a pele do casaco lhe pesava e o aroma das flores forçavam seus olhos a se fechar contra sua vontade.

— Se tem sono, posso arranjar um lugar para você dormir— ele disse.

— Sei que vocês precisam de descanso.

— Não posso dormir aqui...E ainda por cima com você! — Ela abriu os
olhos na mesma hora.

— Perdão se não entendo — Ele franziu a testa.

— Meu Deus, você é pior do que uma criança! — Ela esfregou as
têmporas.

— Eu sou uma dama. Damas não ficam sozinhas com
cavalheiros… Ainda mais em situações como essa. Minha reputação ficaria comprometida. E é tudo o que eu tenho.

— Viu o que eu disse? Regras demais… Você está sozinha aqui comigo
agora. Faz diferença se for acordada ou dormindo?

— Mas é claro que faz!

— Ah! Acho que entendi seu medo. Você acha que vou fazer como o
homem mordomo e tirar suas roupas enquanto você dorme. Ele faz isso com as outras moças na casa. É isso? — Ele se encolheu novamente.

— Não vou dizer que não tenho curiosidade. Mas parece que não é certo. Se fosse, ele não se esconderia quando há alguém no corredor. Mas… De qualquer forma, você pode inventar uma história. Você é boa nisso.

— Sou?

— Sim. Você diz uma coisa e sente outra o tempo todo. Você diz que
não se lembra mais da sua mãe e me manda plantar capim-limão porque era o perfume na pele dela. Diz para aquele homem que vem lhe visitar com flores mortas e caixas de comida doce que você tem consideração por ele, quando só falta vomitar de medo quando ele aparece na sua frente… Por que não pode dizer que não está aqui quando está?

Ela deveria ter ficado; queria ter respondido, queria ter enfiado as unhas contra aquele rosto presunçoso. Ao invés disso, partiu

— fugiu pela neve, o rosto em brasa, assustada com o que ouvira. E, como praga, ficara doente por conta disso: passou o Ano-Novo de cama, febril, culpa da neve na qual se afundara quase até os joelhos.

Em seus sonhos, o dossel de sua cama era uma floresta, glicínias e
orquídeas pendendo do teto em cortinas coloridas; os lençóis eram feitos de grama alta e azevinhos pontiagudos, lhe arranhando a pele a ponto de tirar sangue.

E em seus delírios, podia jurar que as manchas cor de safira lhe subiam pelas pernas, queimando, arrancando gritos de dor e rugidos dos pulmões carcomidos pelo inferno em seu sangue.

A Casa de Vidro  (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora