VIII. A VÉSPERA

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ELEANOR ENCONTROU Mark dando voltas pela estufa abandonada,
escavando buracos com a ponta de sua bengala.

As flores que Stella fizera
surgir das cinzas ainda estavam ali, em seus tons terríveis de vermelho,
contrastando com o mato seco e as folhas podres.

Depois que Sebastian
partira, nunca mais viram raposas na região, nem corvos de nenhuma espécie
ou cor.

Mark crescera em uma casa sem grandes arroubos de cor, o castelo de
vidro apenas uma memória extravagante de um velho bonachão e sonhador,
sem grandes objetivos concretos na vida. Eleanor chegara a contratar outros
jardineiros, mas parecia que a terra não respondia mais aos comandos, não
com o mesmo viço.


— É uma criaturinha peculiar, essa tal de Stella, não? — Mark sorriu. —
Para lhe convencer a abrir esse elefante branco depois de tanto tempo! As
rosas são dela?

— São. São, sim. O pai dela era um excelente jardineiro. Fazia brotar
coisas do céu, se quisesse.

— Se a senhora diz, eu acredito... De qualquer forma, é bom ter visitas
em casa. Sempre achei que a senhora se isola demais.

— Gosto muito da minha própria companhia, Mark. Não preciso de
plateia. — Com um suspiro, apoiou as mãos no que restara da árvore. — Por
quanto tempo você vai ficar?

— Espero que por bastante tempo. Mas não sou eu quem decide… É o
Exército. Eu sou uma peça na composição deles.

Como contar que ela estava para morrer? Era o que Sebastian tinha lhe
dado quando ela partira de seu mundo, deixando-o para trás com Stella: o
direito de saber o dia e a hora, a honra de poder planejar a partida para que
não fosse um ato de desespero ou uma surpresa incômoda para as pessoas ao
seu redor.

O futuro já tinha sido vivido; era ela quem finalmente o alcançara.
Sebastian lhe garantira que Mark viveria — que atravessaria a guerra que
agora se erguia no horizonte, invisível mas cada vez mais próxima; que teria
seu futuro e que, por sua vez, seus filhos e netos teriam vidas plenas: às vezes
felizes, às vezes infelizes, mas nunca sem sabor.

E Mark não sabia de nada daquilo. Como era presunçoso! Como era
estúpido em suas certezas pétreas. O mundo era seu: tinha posses, uma
comissão no Exército e a certeza de que estava no lado certo da batalha, do
lado correto da História. Stella lhe parecia apenas uma menina, um bicho
assustado; se ele soubesse o universo que ela carregava dentro do peito…
Então lhe ocorreu, como um soluço dolorido que fere até o céu da boca,
que, como Sebastian, também Stella viera até ali porque sua mãe era humana
e seu corpo era curioso; viera para experimentar as emoções que fazem brotar
sangue nos lábios e que transformam a alma, que fazem crescer plantas e
atordoam as certezas. E se ela caísse na conversa de um homem como Mark?

“Deus, até parece que eu não a conheço”, ela pensou. Ela seria capaz de
comer o coração de homens como Mark no jantar. Só lamentava não viver
para ver o que ela seria capaz de criar.

Assim como lamentava não poder
pegar no colo os filhos que Mark teria após a guerra, com a mulher que o
montaria como a um quebra-cabeças a partir dos restos que as trincheiras da
Bélgica cuspiriam.

Não era para ela aquela vida. E doía — de novo o coração
se partindo, como se fosse de cristal.
— Quando eu morrer, — ela disse. — espero que você não desmonte
esta estufa.

— Oh, mãe, você viverá até os cem anos. — Mark sorriu.

“Convencido e tolo”, pensou. Como o pai antes dele. Como todos os
homens… como todos os humanos. E ela o amava apesar disso. Ela o amava
porque era seu filho e porque ele era humano, de sangue quente e ideias
frágeis, como ela tinha tido um dia.

Ela o amava porque ele fora um pequeno
milagre: depois de Stella, depois daquela noite em que aceitara o que seu
coração mais desejara, ela tinha pensado que sua vida tinha terminado antes
mesmo de começar. Como poderia amar novamente a qualquer um depois
daquilo?
Mas ela amara: lá estava aquele garoto como prova.

Como teria sido,
porém, se ela nunca tivesse acompanhado Sebastian pelo véu? Como seriam
os olhos que viram o pai de Mark se fossem inocentes, ou cheios do temor
que ela tinha antes? Ela na certa teria se submetido, uma esposa como as
outras; teria aceitado as regras, o cabrestro.

— Não, não vou viver cem anos. E eu realmente quero que você me
prometa isso.

— Se lhe alivia a alma, prometo. — Mark sorriu.

— Nada de desmontar
o elefante branco. Quem sabe? Deus ajudando, encontro uma esposa que
goste de rosas. — Apontou as flores no canteiro. — E que aceite esse troço
todo. Talvez dê para recuperar!

— Quem sabe? — Eleanor sorriu um pouco. — Seja bom para ela,
garoto. Não a trate como um vaso ornamental ou uma imagem de cristal.

— Eu não aguentaria uma semana com uma guria desse tipo… Não
tendo afiado meus dentes com você, mãe. — O oficial se afastou um pouco
das flores.

— Você é mais de ferro do que esse prédio. Eu quero o que você
teve com o meu pai. Deus me ajude a achar!

— Deus, meu filho, não tem absolutamente nada a ver com isso —
Eleanor disse, enquanto saía da estufa sem olhar para trás. Onde estava
Stella? Decerto se escondendo longe dali, longe dos olhos de Mark. Ou então
ainda se recuperando.

A noite seria cruel para a garota e ela sabia.
Então era isso morrer? Parecia um dia como qualquer outro: as mesmas
obrigações, as mesmas horas no relógio. Como o dia em que ela decidira
aceitar os termos que Sebastian lhe propusera. Se fechasse os olhos, ainda
podia ouvi-lo explicando-se, tentando arranjar palavras que dissessem como
seria, o que seria, por que ela não deveria temer. E podia ouvir a si mesma
dizendo ‘está bem, eu aceito’. Curiosidade e desejo transformaram seus ossos
em ferro e moldaram a vida que terminava naquele instante: uma noite como
qualquer outra, uma noite como seria a sua última; quando ela saíra de sua
cama bem desperta e seguira com ele para longe, para onde as raposas e os
monstros se escondiam.

Porque o mundo estava mudando, ele dissera. Porque ele nascera para
aquilo e vivera até ali para aquele instante. Para tentar deixar uma marca.

As
regras deles eram diferentes: era preciso, simplesmente; não tinha motivo
possível de explicar em termos humanos. Para eles, a criação era algo
necessário, algo belo: se dois corpos se encontram, devem se unir.

Ela
aceitara, por uma noite, jogar o jogo como ele jogava, antes de ser arrastada
para o seu devido lugar por algum homem desconhecido de seu próprio
mundo.
Se ela teria que ser um vaso, seria para alguém que ela desejava.

E quando viera o homem desconhecido, quem diria, ela jogou com as
regras que aprendera com Sebastian. E ganhara. E lá estavam eles, ela e
Mark, que nunca teria existido se não fosse por aquela noite e pela coragem
que ela ganhara depois de tudo o que lhe ocorreu.

Era uma coragem
necessária: ela vira horrores que enfim chegavam até eles, em asas de corvos
e de aviões funestos.

A Casa de Vidro  (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora