ELEANOR ENCONTROU Mark dando voltas pela estufa abandonada,
escavando buracos com a ponta de sua bengala.As flores que Stella fizera
surgir das cinzas ainda estavam ali, em seus tons terríveis de vermelho,
contrastando com o mato seco e as folhas podres.Depois que Sebastian
partira, nunca mais viram raposas na região, nem corvos de nenhuma espécie
ou cor.Mark crescera em uma casa sem grandes arroubos de cor, o castelo de
vidro apenas uma memória extravagante de um velho bonachão e sonhador,
sem grandes objetivos concretos na vida. Eleanor chegara a contratar outros
jardineiros, mas parecia que a terra não respondia mais aos comandos, não
com o mesmo viço.
— É uma criaturinha peculiar, essa tal de Stella, não? — Mark sorriu. —
Para lhe convencer a abrir esse elefante branco depois de tanto tempo! As
rosas são dela?— São. São, sim. O pai dela era um excelente jardineiro. Fazia brotar
coisas do céu, se quisesse.— Se a senhora diz, eu acredito... De qualquer forma, é bom ter visitas
em casa. Sempre achei que a senhora se isola demais.— Gosto muito da minha própria companhia, Mark. Não preciso de
plateia. — Com um suspiro, apoiou as mãos no que restara da árvore. — Por
quanto tempo você vai ficar?— Espero que por bastante tempo. Mas não sou eu quem decide… É o
Exército. Eu sou uma peça na composição deles.Como contar que ela estava para morrer? Era o que Sebastian tinha lhe
dado quando ela partira de seu mundo, deixando-o para trás com Stella: o
direito de saber o dia e a hora, a honra de poder planejar a partida para que
não fosse um ato de desespero ou uma surpresa incômoda para as pessoas ao
seu redor.O futuro já tinha sido vivido; era ela quem finalmente o alcançara.
Sebastian lhe garantira que Mark viveria — que atravessaria a guerra que
agora se erguia no horizonte, invisível mas cada vez mais próxima; que teria
seu futuro e que, por sua vez, seus filhos e netos teriam vidas plenas: às vezes
felizes, às vezes infelizes, mas nunca sem sabor.E Mark não sabia de nada daquilo. Como era presunçoso! Como era
estúpido em suas certezas pétreas. O mundo era seu: tinha posses, uma
comissão no Exército e a certeza de que estava no lado certo da batalha, do
lado correto da História. Stella lhe parecia apenas uma menina, um bicho
assustado; se ele soubesse o universo que ela carregava dentro do peito…
Então lhe ocorreu, como um soluço dolorido que fere até o céu da boca,
que, como Sebastian, também Stella viera até ali porque sua mãe era humana
e seu corpo era curioso; viera para experimentar as emoções que fazem brotar
sangue nos lábios e que transformam a alma, que fazem crescer plantas e
atordoam as certezas. E se ela caísse na conversa de um homem como Mark?“Deus, até parece que eu não a conheço”, ela pensou. Ela seria capaz de
comer o coração de homens como Mark no jantar. Só lamentava não viver
para ver o que ela seria capaz de criar.Assim como lamentava não poder
pegar no colo os filhos que Mark teria após a guerra, com a mulher que o
montaria como a um quebra-cabeças a partir dos restos que as trincheiras da
Bélgica cuspiriam.Não era para ela aquela vida. E doía — de novo o coração
se partindo, como se fosse de cristal.
— Quando eu morrer, — ela disse. — espero que você não desmonte
esta estufa.— Oh, mãe, você viverá até os cem anos. — Mark sorriu.
“Convencido e tolo”, pensou. Como o pai antes dele. Como todos os
homens… como todos os humanos. E ela o amava apesar disso. Ela o amava
porque era seu filho e porque ele era humano, de sangue quente e ideias
frágeis, como ela tinha tido um dia.Ela o amava porque ele fora um pequeno
milagre: depois de Stella, depois daquela noite em que aceitara o que seu
coração mais desejara, ela tinha pensado que sua vida tinha terminado antes
mesmo de começar. Como poderia amar novamente a qualquer um depois
daquilo?
Mas ela amara: lá estava aquele garoto como prova.Como teria sido,
porém, se ela nunca tivesse acompanhado Sebastian pelo véu? Como seriam
os olhos que viram o pai de Mark se fossem inocentes, ou cheios do temor
que ela tinha antes? Ela na certa teria se submetido, uma esposa como as
outras; teria aceitado as regras, o cabrestro.— Não, não vou viver cem anos. E eu realmente quero que você me
prometa isso.
— Se lhe alivia a alma, prometo. — Mark sorriu.— Nada de desmontar
o elefante branco. Quem sabe? Deus ajudando, encontro uma esposa que
goste de rosas. — Apontou as flores no canteiro. — E que aceite esse troço
todo. Talvez dê para recuperar!— Quem sabe? — Eleanor sorriu um pouco. — Seja bom para ela,
garoto. Não a trate como um vaso ornamental ou uma imagem de cristal.— Eu não aguentaria uma semana com uma guria desse tipo… Não
tendo afiado meus dentes com você, mãe. — O oficial se afastou um pouco
das flores.— Você é mais de ferro do que esse prédio. Eu quero o que você
teve com o meu pai. Deus me ajude a achar!— Deus, meu filho, não tem absolutamente nada a ver com isso —
Eleanor disse, enquanto saía da estufa sem olhar para trás. Onde estava
Stella? Decerto se escondendo longe dali, longe dos olhos de Mark. Ou então
ainda se recuperando.A noite seria cruel para a garota e ela sabia.
Então era isso morrer? Parecia um dia como qualquer outro: as mesmas
obrigações, as mesmas horas no relógio. Como o dia em que ela decidira
aceitar os termos que Sebastian lhe propusera. Se fechasse os olhos, ainda
podia ouvi-lo explicando-se, tentando arranjar palavras que dissessem como
seria, o que seria, por que ela não deveria temer. E podia ouvir a si mesma
dizendo ‘está bem, eu aceito’. Curiosidade e desejo transformaram seus ossos
em ferro e moldaram a vida que terminava naquele instante: uma noite como
qualquer outra, uma noite como seria a sua última; quando ela saíra de sua
cama bem desperta e seguira com ele para longe, para onde as raposas e os
monstros se escondiam.Porque o mundo estava mudando, ele dissera. Porque ele nascera para
aquilo e vivera até ali para aquele instante. Para tentar deixar uma marca.As
regras deles eram diferentes: era preciso, simplesmente; não tinha motivo
possível de explicar em termos humanos. Para eles, a criação era algo
necessário, algo belo: se dois corpos se encontram, devem se unir.Ela
aceitara, por uma noite, jogar o jogo como ele jogava, antes de ser arrastada
para o seu devido lugar por algum homem desconhecido de seu próprio
mundo.
Se ela teria que ser um vaso, seria para alguém que ela desejava.E quando viera o homem desconhecido, quem diria, ela jogou com as
regras que aprendera com Sebastian. E ganhara. E lá estavam eles, ela e
Mark, que nunca teria existido se não fosse por aquela noite e pela coragem
que ela ganhara depois de tudo o que lhe ocorreu.Era uma coragem
necessária: ela vira horrores que enfim chegavam até eles, em asas de corvos
e de aviões funestos.
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A Casa de Vidro (CONCLUÍDA)
AventuraFlores não crescem do nada - ou crescem? Para Eleanor, era o mistério que não conseguia responder: qual era o truque daquele jardineiro contratado para cuidar da estufa em sua casa e que transformara o lugar em uma floresta imaginária. Sebastian, o...