VI. O QUE RESTA

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— VOCÊ VAI PRECISAR pelo menos fingir que dorme

— Eleanor
estendeu a camisola branca sobre a cama do quarto ocupado por Stella

— Eu
suponho que nisso você seja como ele?
Stella apenas assentiu, ainda admirada com tudo a seu redor, com os
objetos nas mesas e dentro dos armários.

Pousou a mão por um instante no
batente da janela e retirou os dedos, assustada, vendo como surgiam
minúsculas folhas esverdeadas das frestas.

A senhora viu e deu uma risada
leve, chacoalhando a cabeça. Não iria arrancar os brotos daquela vez: que a
janela apodrecesse, se fosse o caso. Tinha tanto ainda a perguntar, mas sentia
que a garota não conseguiria responder: estava atordoada com tudo, os
ombros curvados com um peso invisível que só aumentara depois de
encontrar Mark.

O rapaz, tagarela e completamente tapado como o pai, não tinha notado
que estava assustando a visitante mais do que a entretendo.

Tinha se exibido
como o pavão que era; e aquilo fazia Eleanor se lembrar de como tinha
aceitado a corte que o pai de Mark lhe fizera, anos antes, por ele ser o oposto
de Sebastian. Agitado quando o outro era calmo, um homem que mexia com
aço e ferro ao invés de flores e ervas. Loiro e flexível como um gato, ao invés
dos cabelos castanhos e das mãos rudes do jardineiro.

Um complemento do
outro.

— Ele gosta muito de você — Stella disse, por fim. — Mark, eu digo.
Ele gosta muito de você.

— Bem, ele é meu filho!

— Falo porque humanos são cheios de promessas e declarações, e
raramente as cumprem. Amor não é algo que exista por decreto. Nem mesmo
entre gente da mesma matriz.

— Ela virou-se para Eleanor, piscando com
dificuldade, os olhos ainda se acostumando com a poeira no quarto, tentando
se focar

— Vou sentir muito por fazê-lo chorar. Porque me parece que a dor
lhe virá desta forma. Ele carrega muita emoção no corpo.

— Então foi por isso que você veio. — Eleanor desviou o olhar. —
Deveria ter imaginado.

— Foi o que vocês combinaram. Não foi?

— Sim. Foi o que combinamos. Mas uma coisa é saber em teoria. Outra
coisa é quando chega… Quando chega o momento. É um pouco assustador.

Stella assentiu, sentando-se ao lado de Eleanor, tomando suas mãos com
cuidado, observando os dedos agora enrugados e a pele flácida, o dorso
manchado pela passagem dos anos. Eleanor acariciou os cabelos da garota
com um sorriso triste nos lábios. Em sonhos, tinha colocado aquela menina
para dormir tantas e tantas vezes. Criança em seus sonhos, a única maneira
de vê-la depois de tudo, Stella dormia: era a natureza humana em seu corpo
que por vezes vencia.

Mas a garota tinha a pele gelada, os olhos muito
grandes, o corpo quase oco por dentro: Eleanor tinha medo de colocar a mão
nela e escutar o ritmo lento, uma gota por vez, do sangue inútil que lhe corria
nas veias minúsculas.

— Não tenho necessidade de sono — Stella disse.

— Mas se eu me
deitar, você cantaria para mim? Você nunca mais cantou depois que aquele
homem foi embora. O pai de seu outro filho. Você ficou tão quieta.

— Ele partiu meu coração.

— Partiu? — A garota franziu a testa.

— É possível? Pensei que era
algo mole como pele, não como ossos.

— É força de expressão. Quer dizer que sofri quando ele morreu. Fiquei
triste. E quando um humano fica triste, seu coração dói de tal forma… Que é
como se fosse sólido como osso e tivesse se rachado.. E aí dói.

Eleanor não percebeu que voltara a chorar. Stella deitou-se no colchão,
estranhando a maciez e o toque frio dos tecidos, e fechou os olhos.

Não
dormiria: mas para ter aquelas mãos em seus cabelos de novo, aquela voz lhe
aquecendo o centro do peito, ela poderia muito bem se esforçar um pouco.
Entendia agora o que Eleanor quis dizer: aquilo era diferente.

O sangue
quente, o vibrar da canção, tudo aquilo lhe aquecia de maneira impossível de
recusar ou resistir. Era aquele tipo de força, aquele tipo de imã, que unia os
humanos entre si. Podia ver porque era tão desejado, tão procurado.

Era algo
com o qual era possível se acostumar. Era perigoso, muito mais perigoso do
que uma baioneta, do que uma arma com pólvora. Poderia reduzir qualquer
um à posição de um bicho em questão de instantes.

A Casa de Vidro  (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora