Capítulo 4 - O livro dos delírios

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Numa manhã de atraso, o despertar tardio me fez perder o ônibus. Corri, mas o desespero era em vão para alcançar a primeira aula; o primeiro horário já se esvaíra. O relógio marcava sete e dez. Era o limiar do tempo para adentrar a sala, forçando-me a aguardar do lado de fora até a segunda aula.

Ainda nas proximidades do meu bairro, ao me aproximar do ponto de ônibus, percebi um carro parando ao meu lado. Uma voz familiar ecoou:

— Ei, princesa. Vamos? — Era Cecília, com seu sorriso habitual, indicando que estava bem e o "cansaço" havia se dissipado. — Perdeu a hora, mocinha?

— Sim, confessor — respondi. — Esse foi o preço ao dedicar meus miolos até altas horas, em preparação para a sua prova. As horas, entretanto, foram rápidas, escapando por meus dedos como fios de areia.

Ela riu jocosa.

— Oh, pobrezinha! — Sua voz adornada por um sorriso travesso que desenhava constelações ao meus olhos. — Então a culpa é minha? — disse provocativa.

— Sim, você e a gramática são musas do meu cansaço.

— Coitadinha — disse ela ironicamente, mas sua ternura contradizia as palavras.

A brincadeira persistiu, duelando a seriedade da situação. Nossas risadas eram como notas que compunham uma melodia única, revelando a essência da Cecília que eu sempre conheci.

E então, o tom da conversa mudou.

Por um instante ela amenizou o riso e contou-me haver uma sacola sobre o banco traseiro, pedindo-me para pegá-la.

Era um livro de literatura espanhola. Há tempos não encontrava um texto que liberasse tamanha emoção. Um presente para mim. A gratidão, radiante, brotou como flores em um jardim.

— Ontem durante uma de minha leituras noturnas, encontrei este livro e pensei em dá-lo a você. Espero que goste e que a leitura lhe encontre bem.

Diante do livro entre minhas mãos, senti-me envolvida por uma sensação única, como se a cada página virada, Cecília me conduzisse por caminhos novos e secretos. Era mais do que um simples presente; era um portal para compreender os pensamentos, os sentimento e as inspirações que moldavam a mulher extraordinária diante de mim.

Em resposta, prometi a mim mesma não apenas ler aquelas páginas, mas absorver cada nuance, cada emoção costurada pelo autor. O livro se tornou um elo, um laço invisível que nos unia de forma única, como se as palavras escritas fossem fios que teciam a tapeçaria de nossa amizade.

— Como posso agradecer tamanho carinho? — indaguei.

— Não me agradeça. Faz tanto por mim.

— É gratuito, acredite — sorri.

Ela colocou rapidamente os olhos para o meu rosto, depois voltou para a direção.

— Você é uma menina singular, sabia? — sua voz, carregada de admiração, ecoava como uma canção suave. Eu, surpresa pela magnitude de suas palavras, permiti-me envolver pela melodia que se desenhava.

— Eu? Por quê? — minha resposta, tingida de humildade, não conseguia esconder a perplexidade que suas palavras haviam provocado.

— Porque é diferente. Não carrega o diálogo infantil que caracteriza a maioria das pessoas da sua idade. Você pensa de maneira única, já tem uma visão de mundo peculiar. Desde que te conheço, você é assim. Seus pais têm um grande orgulho de você, e eu também.

A timidez, mais uma vez, fez-se presente. Ruborizei-me com a forma como ela falou e com o olhar que me lançava. Foi nesse momento que me vi ainda mais encantada, mesmo sabendo que ela nutria por mim um carinho inocente, como sempre teve.

Aos olhos de RaíssaOnde histórias criam vida. Descubra agora