1976
Os pés de Sally voltaram a doer, os band-aids tinham se descolado com o suor e a correia dos tamancos de madeira estava esfolando as bolhas nos seus dedos. Ela ganhava 10 centímetros de altura com eles e por isso decidiu seguir em frente mancando. Já fazia aquilo há 20 anos e sempre soubera como se destacar, e embora naquele verão, onde tudo parecia derreter de longe, ela estivesse mais magra do que de costume, ela ainda tinha a mesma confiança de quando havia começado. Não dispunha mais da beleza estonteante e nem da juventude que um dia foram suas, seu rosto era uma ossada com duas covas de cada lado no meio de cachos platinados e sua barriga tinha sido engolida pelas costelas. A heroína, o cigarro e álcool eram sua dieta favorita e mastigar algo ou se lembrar do estômago era mero capricho que ela evitava sem nenhum esforço.
Depois de meio quarteirão Sally resolveu que iria até a esquina Exceto pelos vestígios deixados, não havia sinal de vida naquelas ruas; prédios grudados uns nos outros sem nenhuma luz, latas de lixos tombadas, ratos e baratas saindo dos bueiros, muros e portas pichados e becos mal iluminados. Era familiar como qualquer rua em Bushwick, onde morava, mas era medonho também, como se ninguém vivesse mais ali, como se todo mundo tivesse fugido para se salvar. Faltava o burburinho, os palavrões em voz alta, a música dos clubes e os bares entupidos, faltava os cafetões e suas prostitutas, os traficantes e os bêbados e também os carros que espreitavam as calçadas em busca de perversão. Era quieto demais para qualquer lugar de Nova York e isso estava começando a deixar Sally irritada.
A garrafa em sua mão direita estava pela metade e o cigarro na outra mão tinha virado uma ponta insignificante de brasa. Quando estava nervosa fumava um cigarro atrás do outro, conseguia fumar um maço inteiro para drenar a ansiedade que a consumia nos momentos de tensão, tentou tragá-lo uma última vez, mas só conseguiu queimar os lábios, soltou um palavrão e arremessou a guimba longe. Era um daqueles dias em que só queria se trancar no seu apartamento apertado de três cômodos, ligar a TV e colocar um videocassete pornô no volume máximo para abafar o barulho da rua e as brigas do casal do andar de baixo. Considerava a pornografia uma verdadeira arte e se imaginava nos filmes constantemente. Getrel, sua melhor amiga, tinha feito alguns testes, mas a ninharia que pagavam era desanimadora. "Tem que se começar por algum lugar, Sally." insistia Getrel toda vez que entravam naquela discussão, mas aquela mixaria não pagava as contas.
(— Então você gosta de uma putaria? — dissera o vizinho uma vez, apalpando o volume maciço em suas calças logo pela manhã. — Talvez a gente possa ver um filme juntos um dia desses. — insistiu, trancando a passagem da escada.
Foi a primeira e única vez que conversou com aquele homem repugnante. Ele deu um longo bocejo e sorriu com os poucos dentes que tinha, coçou os fios grisalhos remanescentes atrás da nuca, onde a calvície não o tinha alcançado e esperou pela resposta. Fedia a álcool e a peixe. O estômago de Sally revirou, podia sentir a sola dos pés latejarem, os óculos escuros escondiam sua impaciência, ela desejava apenas um banho e sua cama.
— Por que não chama a sua mulher pra ver uma putaria? — redarguiu Sally.
— Ah... Violet?Não. Não. — ele sacudiu a cabeça como se lamentasse a morte de alguém. — Ela não gosta dessas coisas... Sabe como é...
— Não, cara, eu não eu sei e não faço questão de saber. Agora se me der licença...
Ela avançou para subir e o homem abriu caminho com um sorriso murcho e uma expressão obtusa estampada na sua cara bufonídea.
— Então é verdade o que eles dizem por aí, não é?
Sally se virou para encará-lo, mas desta vez tirou os óculos.

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Paradise Hotel
TerrorO que há entre o Céu e o Inferno? Existe um hotel cujo endereço é incerto e cujos hóspedes são exclusivos. Nem todos podem chegar lá. Nem todos conseguem sair. Debbie é confrontada a encarar sua morte e adentrar este lugar, que para ela não passa de...