As sombras de prometeu.

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Capítulo 2.






As sombras de Prometeu





Justin Bieber




Meus beijos eram apressados. Por mais que eu quisesse continuar ali, naquela posição - sobre ela e permitindo que seus dedos explorassem minhas costas nuas -, eu estava atrasado. Estava atrasado e nada impediria um homicídio se o treinador Custódio me visse colocando a sunga depois das três. De novo. 
A chuva agredia a janela, do lado de fora. As nuvens escuras, fazendo com que a paisagem além do vidro fosse cinza e pouco convidativa, só tornava os edredons volumosos e os abraços sedentos da minha parceira mais atraentes. O calor que sua companhia me proporcionava, o conforto da cama macia e a adrenalina transmitida pelos beijos e carícias tornavam o nosso afastamento uma tortura. Sua pele quente, o perfume floral e os gemidos baixos, sussurrando meu nome, eram o que, durante dias, alimentavam o meu espírito. Meu espírito carente de vida e sentimentos.
Inspirei novamente em seu pescoço, fazendo com que ela se arrepiasse. O cheiro morno e feminino do seu corpo eram, para mim, como o álcool. Me viciavam e embriagavam. Faziam com que eu esquecesse todos os problemas, todos os sentimentos que um dia eu já tive. Me tornavam insensível. E me tornar insensível era tudo o que eu precisava. Era nisso, na insensibilidade, que eu me refugiava. Nisso que eu pensava para evitar que a onda de arrependimento, tristeza e solidão me arrastasse para o abismo escuro no qual eu me encontrava há dois anos
Só de pensar nas lamúrias solitárias, nas lágrimas vãs e nos gritos desesperados, soltados ao vento, meus pelos se eriçavam. Eu era um escravo dessas lembranças. Um doente, obrigado a me anestesiar o tempo todo para que as alucinações não voltassem. Obrigado a estar sempre dopado para que a dor lancinante ficasse distante. Para que meu peito não rasgasse. 
Eu odiava cada segundo da minha vida. Cada respiração que eu dava. Cada batimento cardíaco. Tudo, desde o fatídico dia. O dia em que eu perdi o lampejo de felicidade que me restava. O dia em que fui jogado nas trevas eternas, obrigado a procurar em outros objetos, em outras carnes, alternativas que preenchessem meu corpo oco. 
Levantei meus olhos contrariados para o relógio no criado-mudo. Eu realmente estava atrasado. Muito atrasado. Quase irremediavelmente atrasado. Precisava me apressar. Precisava sair de lá o mais rápido possível se não quisesse ser castrado pelo treinador.
Olhei para baixo, para os olhos castanhos que me encaravam com intensidade, e dei um sorriso leve. Simples, desprendido. Daqueles sorrisos que não pedem satisfações. E ela, bufando, entendeu.
Rolei para o lado da cama, saindo de cima da mulher, e me sentei de imediato. Vasculhei rapidamente o aposento com os olhos, procurando o canto no qual eu havia arremessado minha camisa, e a encontrei esmassagada próxima à porta. Me espreguiçando, caminhei até ela, resgatando-a do carpete sem qualquer cerimônia.
Yolanda, em sua camisola fina, continuava sentada no colchão. Sua feição, pude perceber após passar o tecido da camisa pelo rosto - vestindo-a - estava severa. As marcas da idade em sua face estavam mais acentuadas, e, daquela forma como ela me olhava, com uma rigidez maternal, era quase impossível desvendar sua juventude. Era difícil ver, através de sua máscara mal humorada, a bela mulher que ela havia sido quando jovem. 
Rolei os olhos e soltei um gemido fraco. Não era possível que ela estava emburrada. 
- Não fique assim. – Falei com a voz arrastada. 
A mulher continuava a me olhar com severidade. 
- Eu detesto quando você vai embora assim. De repente. – Ela confessou. Voltou seus olhos para mim tão submissa quanto uma adolescente delirando fantasias amorosas. 
O que era bem engraçado, na verdade, já que Yolanda não era adolescente há boas décadas.
Já na casa dos quarenta, ela era o que se podia chamar de “bem conservada”. Alta, magra, as curvas bem feitas. Os únicos vestígios dos anos, em seu corpo, apareciam em leves rugas espalhadas pelo rosto. E no tom de voz maternal, quando ela se irritava.
- Eu tenho que ir. – Falei, me aproximando vagarosamente da mulher, sem perder o contato visual. Yolanda me assistiu sentar no colchão e encolheu as pernas, ultrajada. Suspirei pacientemente. – São quase três horas. 
Estiquei uma das minhas mãos, tocando levemente seu rosto fino. O bico em seus lábios se projetou ainda mais ao sentir a carícia:
- E... ?
Eu sorri. Sorri porque aquela brincadeira toda era estúpida. Me senti, pela primeira vez, como um pai. Um senhor responsável que respeita horários e que, naquele momento, estava explicando tudo, pedacinho por pedacinho, para sua pequena filha. 
Oh, a ironia.
- São quase três horas. – Repeti. – E três horas é a hora chave. Hora em que tudo explode, entende? Hora em que, se eu estiver aqui, posso escolher por quem quero ser esfolado. O treinador Custódio ou seumarido.
Ela torceu o nariz. Tanto que ficou engraçada, então eu ri. 
Yolanda esticou seus longos braços, enlaçando meu pescoço e me puxando mais para perto, para um beijo de despedida. Acariciei seus lábios com os meus devagar, de forma que ela ainda pudesse saborear o beijo enquanto eu estivesse longe. A mulher me soltou com um sussurro baixo, uma súplica que era sempre devolvida com um sorriso. “Volte logo”, ela dizia. 
Saí de lá às pressas. Não olhei para trás ou para os lados. Nem mesmo para o corredor do prédio antes de sair, para me certificar de que não tinha ninguém por perto. Eu não me importava se alguém me visse saindo da casa de uma senhora casada. Não naquele momento.
Por mais que eu tivesse sombras de medo, em outras ocasiões, de ser descoberto, de ser o amante pêgo com a “boca na botija”, naquela hora minha mente não conseguia processar nada que não fosse o som das bufadas do treinador. Suas sobrancelhas anormalmente grossas. O suor rolando pelas bochechas brancas e os olhos cobertos por riscos rosados. 
Entrei em meu pequeno fusca vermelho – ou Espinha, como eu o chamava por ser pequeno, avermelhado e sempre dar problema – e o liguei imediatamente. Ignorei qualquer dificuldade visual proporcionada pela chuva. Tudo no que eu pensava era em chegar no treino a tempo. Em colocar rapidamente a sunga e me jogar na piscina, passando a tarde inteira entre pernadas e braçadas. 
A água, o cloro. Até mesmo os gritos grosseiros do treinador me serviam como anestesia. Eu não tinha consciência enquanto nadava. Eu era como um animal aquático. Uma esponja. Eu filtrava a água. Ela me atravessava e tirava qualquer vestígio de tristeza, qualquer vestígio do luto que me assombrava. Os movimentos dos meus braços, das minhas pernas. A respiração tampada, cortada por segundos, acelerando meus batimentos cardíacos e calando as minhas angústias.
Eu amava a natação. Tanto quando eu amava o perfume de Yolanda. Tanto quanto eu amava a adrenalina de estar fazendo algo errado. Eu era completamente errado. Um deliquente, encrenqueiro... 
E a melhor parte era que eu gostava disso
Me sentia lisonjeado quando as mães tampavam os olhos das filhas ao me verem passar. Quando eu era tema do sermão de domingo do Padre Afonsino. As repreensões do meu avô entravam como uma música leve em meus ouvidos. Uma harmonia gostosa.
A rejeição também me servia de remédio, concluí. Enquanto eu dirigia, pensava em todas as noites que passei bêbado. Dias em que me encontrei com Yolanda, esposa de um pequeno empresário. Tardes que gastei com mulheres e jogos. Pensei em todos os vícios humanos que tentei para alienar meu cérebro de pensamentos. Vícios que tinham me transformado no que sou: o terror dos moralistas. O “mal caminho” em pessoa.
Estacionei o Espinha na frente do Centro Esportivo. Coloquei a blusa de frio que eu sempre deixava jogada no banco traseiro. Dei uma última olhada no relógio – que marcava três e cinco -, puxei o capuz do casaco e abri a porta.
Enfrentei o vento gelado e as gotas agressivas durante poucos segundos. Corri para o portão de vidro do enorme edifício – um dos únicos da cidade que não tinha o estilo enxaimel – e esperei que as portas automáticas se abrissem. O ambiente revelado era um saguão espaçoso, luxuoso. A garota da recepção me olhou de soslaio. Os olhos brincalhões e sonhadores contrastavam com seu sorrisinho malicioso. Sorriso que me fazia lembrar de noites passadas; beijos trocados. 
Sorri para ela também.
- Boa tarde, Tess. – Falei galanteador. Ela respondeu com um aceno de cabeça. – Estou muito atrasado?
Encostei o cotovelo na mesa da recepção. A garota levantou os olhos para mim e sorriu sem graça. 
- Para variar. – Ela disse baixinho. 
Já estava formulando algum comentário para deixá-la ainda mais corada quando uma voz irrompeu o ambiente. Voz extremamente rouca, que atravessou meus ouvidos trazendo consigo doses de adrenalina e calafrios.
- Bieber! – As bufadas do treinador Custódio, saindo da porta que dava para a piscina corberta, se tornavam cada vez mais audíveis. – Pelo amor que tenha a Deus, você deve estar zombando da minha peruca! – Ele falou, utilizando sua expressão idiota e típica. – Os outros rapazes já estão dentro da água e você aqui. Flertando! – Apontou Tessália, a garota da recepção, com as sobrancelhas. Levantei minhas mãos e caminhei até ele, me rendendo. 
Por mais que alguma vezes eu sentisse uma atração insana pelo perigo, pela dor, qualquer punição proporcionada pelo técnico estava longe dos meus fetiches. De todas as pessoas presentes em meu universo sem graça e perturbado, Custódio Belézia era o único que me causava arrepios. Aquele que fazia com que eu sentisse cólicas no estômago de pavor toda vez que me lançava um de seus olhares mordazes. 
Na enorme piscina coberta do Centro Esportivo da Rosa, estavam quatro rapazes. Todos já de touca, sunga, óculos de natação. Os braços atingiam a água como cortes de uma espada sobre o oponente. Atingiam-na com violência, técnica, habilidade. Meus quatro companheiros de equipe deslizavam sobre a piscina, mostrando a excelência e aptidão que os fizera estar ali, entre os melhores. Cada um entre uma das raias azuis, concentrados no treinamento.
Corri para o banheiro da área de natação, abri meu escaninho de forma esbaforida e, em questão de segundos, já estava dentro da sunga azulada, minha grande companheira. Cobri meus cabelos desajeitados com a touca, arrumei os óculos. Saí do vestiário tão rápido quanto entrei, encontrando, ainda próximo a porta da entrada, o olhar inquisitorial do treinador Custódio.
Só havia um motivo para eu ainda estar na equipe, eu sabia. Só havia um motivo, um único motivo, pelo qual o técnico aguentava meus atrasos, meus comentários irreverentes e rebeldia. Relembrei a razão de eu ainda estar ali, e, de uma hora para a outra, as grossas sobrancelhas arqueadas de Belézia já não me assustavam. 
Deixei um sorriso travesso brincar em meus lábios e, como uma criança, corri até o bloco de largada. Impulsionei rapidamente o músculo de meus calcanhares e em milésimos de segundo eu já atravessava a água como uma agulha. De forma impetuosa e precisa. Tão leve e veloz quanto uma flecha atirada contra a piscina. Comecei meu nado violento, competitivo, magnífico, deixando que todos os meus pensamentos fossem arrastados pelas ondas que eu formava com meus braços e pernas.
Ah, sim. Só havia um motivo para o depravado Justin Bieber ainda estar ali: por ser o melhor da equipe. A “estrela” da casa Rosenberg
Anualmente, Primaveras Amargas sediava um evento responsável pela euforia local. Pelo surto turístico da primavera. A competição Chermont, nomeada em homenagem ao marido de Moriel Rosenberg – uma das fundadoras da cidade -, era motivo de excitação para todos os habitantes. Rapazes de idades entre dezoito e vinte e cinco anos, herdeiros das duas principais famílias da cidade – Rosenberg e Morgenstern – disputavam pelo “Trevo de Ouro” em uma acirrada disputa de natação. Em uma competição que tinha como palco o temível Lago Turvo, onde Chermont teve sua vida perdida.
Há alguns anos, eu nem consideraria me inscrever como competidor. Não pensaria duas vezes em recusar qualquer oportunidade de estar presente na disuputa. Apesar de, na escola, eu sempre ter me destacado como um bom nadador, eu não faria nada que pudesse incediar ainda mais a rivalidade entre os Rosenberg e os Morgenstern. Nasci acreditando que as pessoas deveriam se amar. Ser boas umas com as outras independentemente da cor, credo, família. Eu costumava a ser pacífico. Tranquilo. Me dava bem tanto com a “casa da estrela” quanto com a minha própria.
Até que o desastre aconteceu.
Até que, de tanto eu conviver com os Morgenstern, eu tive o coração roubado. Roubado, judiado, estilhaçado. Minha alma se enchia de tristeza toda vez que me recordava daqueles momentos. Os melhores momentos da minha vida, que foram perdidos em um piscar de olhos por minha culpa.
Ouvi uma vez o mito de Prometeu, da mitologia grega. Reza a lenda que foi ele o responsável por roubar o fogo de Zeus, o fogo divino, e entregá-lo aos mortais. Como punição, os deuses o acorrentaram junto ao monte Cáucaso, onde uma enorme águia bicaria seu fígado até o entardecer. Durante a noite, o fígado de Prometeu se regeneraria, de forma que, quando a águia voltasse, ele revivesse a dor do órgão dilacerado. Dia após dia. 
Eu era, como vários homens, um Prometeu. Via pedaços do meu coração serem arrancados diariamente por minhas memórias bestiais, só para no dia seguinte tê-lo intacto novamente. Pronto para voltar a ser carcomido. 
As lembranças dos olhos azuis por trás das lentes quadradas. Os cabelos cuidadosamente penteados para trás, que eram o tema favorito da minha zombaria, ainda empesteavam meus pesadelos. A última memória que eu guardava dele, meu melhor amigo, parceiro, me assombrava quando eu não estava entorpecido. 
Éramos três amigos, eu ainda podia me lembrar. Os amigos mais unidos e antagônicos que Primaveras Amargas já havia visto. Éramos uma pintura abstrata, uma mistura de cores fortes e descompassadas que se juntavam em uma tela tosca. Ridícula. 
Eu era o grande Justin Bieber. Atleta, musculoso. Desejado pelas garotas da escola por minhas conquistas esportivas e mentalidade pacífica. Por meus ideais de liberdade e fraternidade, herdados tão fortemente de meu pai: Orlando Bieber, o forasteiro revolucionário.
Ryan Butler era o cérebro da equipe, do nosso trio deslocado. Também tinha sua glória entre as meninas por ser extremamente intelectual, franco e astuto. Sempre andava engomadinho e perfumado. Cabelosloiros penteados, blusa sempre para dentro da calça. Butler, como o chamávamos, destoava grosseiramente do meu estilo selvagem. Seu olhar metódico e palavras macias eram como uma valsa. Uma música clássica que se misturava com meu rock pesado. Ryan era meu melhor amigo. Irmão. Ele era o cara, o único necessário na vida de um homem – depois do pai - , com o qual eu dividia meus pensamentos mais íntimos e obscenos. Meu fiel escudeiro, meu “Sancho Panza”. 
O terceiro integrante do grupo era... 
- Mais rápido, Bieber. Mais rápido! – A voz do treinador alcançou meus ouvidos. 
Uma onda gelada percorreu meu corpo quando percebi no que estava pensando. Quando percebi que estava pensando! O que havia de errado comigo? Todas as minhas angústias, normalmente, seriam levadas pela água da piscina. Todas as memórias boas de um passado ruim. Mas algo estava diferente, e eu nem precisei vasculhar minha cabeça para saber o que era. 

Estava acontecendo de novo

Acelerei minhas braçadas enquanto minha mente voltava para aquele rosto. O último rosto que integrava nosso trio fantástico. Pensar no rosto dela, em qualquer momento, era a única coisa que tirava o gosto dos prazeres dos quais eu era escravo. 
Elizabeth Aniston era representante de classe. Filha de um jornalista em ascensão, delirava com grandes matérias, grandes acontecimentos. Era perspicaz, atenta, persuasiva. Quase sempre nos convencia, a mim e a Ryan, a fazer as coisas de seu jeito. Seu jeito estranhamente feminino e inocente. Jeito engraçado. O mesmo que ela usava na hora de andar, falar, gesticular. 
Ela era simplesmente hilária, desengonçada. Um patinho feio em meio a um lago de cisnes que, de sua maneira estranha, se mostrava exuberante e atraente. Elizabeth era como um paradoxo. Uma tristeza alegre. O mais bonito dos cantos desafinados. Uma guerreira espartana no corpo de uma boneca de açúcar.
Ela era doce, amarga, azeda. Aniston era muitas. Aniston era única. 
Elizabeth, para mim, era o mais repugnante dos seres. O mais vil. Por anos tentei entendê-la. Tentei desvendar os segredos por trás de seus olhos. O mistério que fazia com que ela – caxiona, exigente, autoritária – corrompesse meus sonhos à noite. As imperfeições que eu procurava em sua personalidade, corpo e rosto, depois de algum tempo, pararam de fazer sentido. Se tornaram desculpas esfarrapadas. Uma venda furada que cobria meus olhos e me impedia de ver o que estava a minha frente. Me impedia de ver o estrago que ela, ardilosa, havia feito em minha alma e coração.
Por mais que Elizabeth não fosse a favorita da ala masculina, ela era a nossa favorita. Minha e de Ryan. Nosso Aramis. Nosso Curly. O coração que faltava para a entidade estranha que nós três formávamos. Seu cheiro penetrava tão doce em minhas narinas que, por noites, me peguei procurando por ele em meu travesseiro. Em minhas antigas roupas. Meu desespero em encontrá-la em ínfimos vestígios de realidade era patético. Grotesco. Meu anseio em encontrá-la em outras risadas, outros toques... Outros beijos.
Eu a amava. Insandecidamente
Era apaixonado por Elizabeth Aniston desde nossa primeira troca de olhares. Sonhava em tê-la mesmo quando eu desconhecia os sonhos. Ansiava em tocá-la, sentí-la e fazê-la sentir.
E essa sempre foi a minha maior traição. Meu maior erro.
- Está certo, frangotes. – Ouvi o treinador Custódio rugir da borda da piscina. – Pausa de quinze minutos. Nenhum segundo a mais! 
Parei de nadar imediatamente e levantei o rosto. Meu peito estava arfante, os braços tremiam. Retirei os óculos de natação que, naquele momento, já espremiam meus olhos e observei meus outros companheiros de equipe. Todos tão ofegantes quanto eu deveria estar, retirando seus óculos e toucas para deixar o corpo boiar sobre a lâmina d’água. Fiz o mesmo, olhando para o teto, distante da área coberta, e deixando que o ar, aos poucos, permeasse meus pulmões com oxigênio.
- Ei. – Ouvi alguém chamar. – Bieber.
Movi meus globos oculares com cuidado, até que eles se fixassem na figura de um rapaz na raia ao lado. Pele pouco corada, olhos bastante azuis. Típico de Rosenbergs com o sangue “puro” – aqueles que os dois pais pertencem à vertentes da família. 
- Ivan, oi. – Eu disse, tirando a touca e avacalhando os cabelos com as mãos. – E aí, - sorri, me lembrando que era isso o que ele provavelmente esperaria de mim. – o que foi? 
Ele mordeu os lábios, me analisando com certa malícia curiosa. Mas eu não me surpreendi. A malícia, para Ivan, era como uma carteira de identidade. Digo, um crachá que ele sempre levava. Sua marca registrada. 
O rapaz, filho de um Rosenberg fervoroso, era meu primo de segundo grau. Havíamos formado juntos no colégio, como grandes companheiros de equipe e amigos, nas horas vagas. Apesar da crueldade explícita em seus traços, eu e ele éramos completamente diferentes. Ivan costumava maldar as coisas, as pessoas, enquanto eu apenas maldizia a mim mesmo. Ele era o típico mauricinho popular, enquanto minha popularidade se devia aos meus mal feitos. 
O rosto de Ivan, de um divertido e zombeteiro, passou instantaneamente para o repreensivo. Seus olhos azuis, normalmente cheios de vida, se transformaram em duas esferas murchas de pavor.
Eu soube, imediatamente, no que ele estava pensando. Soube porque era o mesmo assunto que rondava a cabeça de todos os habitantes da cidade. Que os fazia aumentar a frequência de suas rezas, a segurança de suas casas. Era o mesmo assunto desprezível de dois anos atrás. O tema das minhas angústias. A faísca que faria com que minha sede de vingança se tornasse um incêndio. 
- Boatos andam se espalhando, você sabe. – Ele falou. A voz, antes arrogante, agora saía como um sussurro engasgado. – Desde que a médica morreu.
Expirei lentamente. De todos os tópicos possíveis para se escolher em uma conversa, aquele com certeza não era o mais agradável. Eu, se estivesse nos meus melhores dias, provavelmente tentaria desviar drasticamente o tema. Tentaria introduzir qualquer coisa sobre revistas masculinas, ou sobre como anda o campeonato brasileiro de futebol. Mas eu não estava nos melhores dias. Muito pelo contrário.
Desde a morte da doutora, por mais que eu tentasse me afundar em entorpecentes, minha mente borbulhava com pensamentos proibidos - aqueles que eu havia proibido a mim mesmo. Desde que ela fora encontrada em seu consultório, com o peito aberto de forma grotesca, eu não conseguia parar de me lembrar do meu objetivo. Da meta que eu havia considerado há algum tempo atrás, mas que agora parecia mais próxima e alcançável. 
Seria loucura tentar, eu sabia. Lutar para acertar o alvo proposto exigia não apenas insanidade, como uma disposição doentia para enfrentar a morte. Cumprir a meta seria praticamente suicídio.
Eu precisaria estar muito certo de meus anseios antes de aceitar entrar em uma aventura como essa. Deveria medir, em uma balança bastante precisa, o que eu mais teria dificuldade em suportar. Se era o eterno medo, o constante desejo de vingança ou a morte, a escuridão eterna. 
Ivan ainda me olhava, esperando uma resposta. 
- Que tipo de boatos? – Perguntei, também mantendo a voz baixa.
Ivan olhou para os lados, como se não quisesse que os outros escutassem. Para sua sorte, eles estavam ocupados demais tentando recuperar o fôlego ou conversando sobre assuntos banais.
- Foram dois Morgensterns, Bieber. Dois integrantes a menos da casa da estrela. Não posso culpar as pessoas por pensarem... – Engoliu em seco. – Por pensarem que o responsável está... Bem, você sabe. 
Eu entendi. Entendi realmente o que ele quis dizer. 
Os boatos diziam que o responsável era um Rosenberg. Um de nós
- Ah, por favor! – Falei em deboche. – Quanta idiotice. 
Ivan não pareceu satisfeito com minha resposta. Os músculos retesados mostravam que ele estava apreensivo.
- Quer dizer... – Ele voltou a falar, engasgado. – Quer dizer que você não acha que foi...
- Um de nós? – Interrompi. – Não. Não acho que tenha sido um Rosenberg. E, mesmo se tivesse, os fatos não tem nada a dizer. Não há nada que possa sustentar essa suspeita. – Mergulhei durante alguns segundos, tentando refrescar a cabeça que eu jurava estar quente. Emergi, dando de ombros.– Por enquanto, só acho os boatos uma grande tolice. 
Ele suspirou, como se estivesse aliviado. Como se dependesse da minha opinião para formar a sua, e eu não podia culpá-lo. Aquele era um assunto no qual eu tinha um genuíno interesse, e ele estava ciente disso.
- Mas e sobre o impostor? – Voltou a sussurrar. – Você acha que esse realmente pode ser um farsante?
Movi minhas mãos na água fazendo pequenas ondas. Eu usava a bebida, as mulheres e os jogos exatamente para evitar que esse tipo de pensamento me viesse a cabeça. Para evitar que eu começassem a fazer hipóteses, relações, e acabasse me envolvendo no caso mais do que eu gostaria. De novo.
- Não tenho uma opinião a respeito. – Respondi sem tirar meus olhos das pequenas ondas que eu fazia. 
Ivan abraçou a raia azul que nos separava. Seus olhos, agora, brilhavam de excitação.
- O legista disse que os cortes foram menos precisos dessa vez. Como se o culpado estivesse inseguro ou não tivesse a mesma técnica. – Ele sorriu, recuperando sua malícia típica. – Eu achei isso bem interessante. Pensei que pudesse significar alguma coisa para você.
Meus pensamentos ameaçaram fervilhar com a informação. Involuntariamente, minha mente buscava sentidos, ligações, qualquer coisa com o desastre de dois anos atrás. 
Embora meu raciocínio estivesse em fúria, meu semblante permanecia indiferente.
- Não. Não significa nada. Há muito tempo eu não me interesso pelo caso. – Menti. 
Ivan bufou em desânimo. Provavelmente esperava que eu fosse o primeiro a exaltar o assunto. A exaltar suas descobertas. Como não o fiz, a expectativa de que as informações tivessem alguma relevância, aparentemente, tinha caído por terra.
- Mas você vai hoje, certo? – Uma centelha de esperança surgiu em seu rosto. 
Rolei os olhos, me lembrando desse detalhe. Me lembrando que os boatos mencionados tornariam impossível que eu escapasse do compromisso.
- Pode apostar. – Resmunguei.
O garoto gargalhou. Gargalhou porque minha careta deveria estar imperdível. E eu realmente sentia como se o tédio e a preguiça esmagadora, explícitos em meu rosto, fossem ridículos. 
Ele conhecia meu relacionamento com compromissos. Sabia que eu detestava honrar celebrações solenes com a minha presença. Detestava encontros de família, eventos beneficentes e o que quer que fosse que exigisse dedicação. 
- Faz parte de suas “obrigações reais”, Pocahontas? – Ivan zombou com o apelido pelo qual ele sempre me chamava. Em sua face, um sorriso escancarado. 
Inclinei o rosto em uma ironia divertida, estendendo lentamente meu dedo médio. 
- Cala a boca.
O rapaz gargalhou ainda mais e eu não vi como não acompanhá-lo. 
Em momentos ímpares como aquele, eu aproveitava os fragmentos que haviam restado do meu bom humor. O diafragma se contraindo por baixo das costelas me trazia centelhas da felicidade. Do contentamento inocente que eu havia perdido, que havia morrido junto com...
Essa já era outra história

Impulsionei o corpo para fora da piscina, levando com ele uma onda de água que se esparramou como uma poça ao meu redor. Horas tinham se passado desde o início do treino. As luzes artificiais do Centro Esportivo estavam acesas, indicando que o sol já havia se posto no horizonte. Apoiei o tronco nas mãos e observei meus colegas se levantarem para ir ao vestiário. 
Meus olhos estavam doloridos, devido à pressão exercida pelos óculos. Meus músculos, fracos e minha respiração ofegante, sedenta por oxigênio. Por mais que meus amigos de equipe estivessem ansiosos para sair do ginásio, voltar para casa, eu não conseguia compartilhar do mesmo sentimento. Muito pelo contrário. Só de pensar no que agora eu chamava de lar, meu estômago se enchia de náuseas. 
Sabia o que o meu avô diria quando eu chegasse. O seu discurso não seria moralista, como de costume. Seria rigoroso, inquisitorial, me expondo todas as obrigações que eu teria que cumprir naquela noite. E eu sabia que obrigações seriam. Apesar de eu sempre me fazer de desentendido, de irresponsável, eu sabia a importância da minha presença no evento. Aliás, sabia os efeitos catastróficos que minha ausência poderia gerar.
Balancei os pés na água, percebendo que, depois do intervalo proposto por Belézia, meus pensamentos voltaram a ser solúveis nela. Voltaram a se desintegrar durante meu nado violento. Sorri frívolo para a piscina, imaginando que, em dias normais, eu provavelmente sairia dali direto para o bar mais próximo. Para me embriagar até que não tivesse mais consciência. Ou procuraria um prostíbulo. O que viesse mais a calhar. 
- Bieber. – A voz rouca do treinador Custódio arranhou meus tímpanos. Inclinei minha cabeça para encontrar seus olhos de castor. – Não vai para o vestiário?
Balancei os ombros em descaso. Arranquei a touca e deitei no chão. A barriga para cima, os olhos no teto. O técnico ficou apenas lá, ao meu lado e me observando.
- Estou sem pressa. – Murmurei. O que era uma grande verdade. 
Custódio continuava a me olhar paciente, esperando que eu completasse minha frase com mais alguma coisa. Alguma explicação. 
– Se eu demorar pode deixar a chave comigo. Eu tranco a porta da área de natação. – Falei inocente, acreditando que essa era a conclusão que ele esperava. 
Os olhos de castor de Belézia se semicerraram. Era como se eu tivesse aberto a brecha ideal para que a desconfiança entrasse em seu rosto. Ele cruzou os braços, como se estivesse suspeitando da ingenuidade da minha oferta. Que realmente era ingênua.
- Tenho ordens para nunca mais deixá-lo com a chave, Bieber. 
Ergui uma das sobrancelhas, surpreso. O técnico já havia deixado várias vezes que eu cuidasse da chave de segurança e eu nunca, em nenhuma delas, tinha deixado a porta destrancada. 
- O quê? – Perguntei ultrajado, voltando a me sentar e a olhar para ele. – Por quê?
Belézia rolou seus pequenos olhos. Os dentes proeminentes, para fora da boca, faziam-no parecer uma sanguessuga. Ou qualquer outro animal sugador de sangue. A impaciência que ele emanava mostrava que, se eu não dançasse conforme a sua música, minha jugular estaria em perigo.
- Isso pode parecer um choque para você, - ele começou, se utilizando de um tom sarcástico nada agradável.– mas nós temos câmeras de segurança espalhadas por aqui.
Ah. Ah. Foi o que eu pensei, antes de travar uma risada nervosa que ameaçava escapar por meus lábios. 
- Desde quando? – Minha voz saiu fina como um apito. Como se fosse uma mistura da minha diversão, nervosismo e ironia.
- Desde o início do ano. – Ele respondeu. A expressão impassível. – Quero que saiba que eu e todo o Conselho da Rosa condenamos suas ações ilícitas nessa piscina. 
Semicerrei os olhos, ainda reprimindo uma gargalhada. A severidade no rosto de Belézia era tão cômica que me dava tesão. 
- Defina “ações ilíticas”. – Pedi vagarosamente, como forma de provocá-lo.
O rosto do treinador se ruborizou. Tanto que pensei que fumaça fosse sair por seus ouvidos como na chaminé de um trem. Seus olhinhos estavam coléricos, e os dentes deveriam estar se coçando para serem cravados em meu pescoço. Às vezes Custódio Belézia me assustava, sim, mas outras ele era simplesmente a mais hilária das atrações. O entretenimento mais formidável.
- Estamos cientes que... – Ele se interrompeu, fechando os olhos de impaciência. – Você trouxe duas mulheres ao nosso santuário, Bieber. Duas prostitutas! 
Uma prostituta e a moça da recepção. – Corrigi, lhe lançando um sorriso singelo. 
Senti como se as têmporas do técnico pudessem ter se estourado ali, naquele momento. Custódio levou uma das mãos gordas à testa, respirando fundo várias vezes antes de voltar seus olhos miúdos na minha direção. Eu sorria encorajador. 
Ele virou de costas, de repente se dirigindo ao vestiário do qual alguns dos meus colegas já saíam. Enquanto andava, rosnou uma frase. Pequena, abafada, mas ainda assim, significativa. Uma frase que fez com que meu peito explodisse em diversão e meu sorriso se escancarasse ainda mais. Dentre os resmungos rabugentos do treinador, pude distinguir:
Bieber, seu porco fornicador.

Os portões se abriram para a entrada do Espinha. Esperei pacientemente. Meus cabelos ainda estavam molhados, os olhos vermelhos. Sentia meu corpo leve, refrescado, como todas as vezes que eu saía do treino de natação. A chuva ainda agredia as janelas e, dentro do carro, os ventos frios não viam como entrar. 
A majestosa casa em enxaimel enchia minha visão, fazendo com que eu sentisse uma fisgada de nervosismo no estômago. Eu novamente estava atrasado. Atrasado para o compromisso que eu não poderia perder nem morto. Tamborilei no volante como forma de me acalmar, enquanto subia pela trilha ladrilhada até a garagem. 
Embaixo do estacionamento, protegida da chuva, estava uma garota loira que eu conhecia bem. Seus olhos arregalados, ansiosos. Observava o Espinha estacionar com as mãos trêmulas, provavelmente de frio. Uniforme preto, avental branco e saia rodada. A vestimenta típica de empregada de luxo caía bem em seu corpo fino, eu pensava. 
Harriett se apressou para abrir a porta para mim, assim que o carro parou. Observei suas pernas descobertas, os cachos loiros e os olhos inocentes. Durante um momento, senti pena por ela estar ali. Sua silhueta franzina indicava que ela não podia ter mais de dezesseis anos. Tão nova e já com tantas responsabilidades.
- B-b-boa noite, s-senhor Bieber. – Gaguejou de sua forma típica, fazendo com que eu retribuísse com um sorriso amigável. 
Me estiquei até o banco de trás e segurei a blusa de frio que sempre ficava ali. Saí do carro de maneira desajeitada, me preocupando em jogar a blusa para a menina loira. 
- Eu n-não p-posso a-aceitar. – Murmurou.– S-seu avô n-nunca...
- Bobagem. – Interrompi. – Ele não tem que dar palpite nas minhas ações. 
Me virei em direção a porta de entrada e parei. Me petrifiquei ao fixar meus olhos nos dele. Ao olhar para as esferas azuladas que habitavam o rosto do meu avô. 
Os cabelos brancos, a feição profundamente enrugada. Wilfried Bacelar parecia um sábio retirado das telas de Michelangelo, com seus olhos francos e transparentes.
- Oh, eu acho que tenho. – Ele falou.– Ainda mais quando essas ações são inerentes à política de Primaveras Amargas.
“À política de Primaveras Amargas”, meu avô repetia com orgulho.
O terno de linho cinza, os cabelos penteados e os sapatos de couro fino reafirmavam sua posição. Wilfried Bacelar era o prefeito de Primaveras Amargas. Homem mais respeitado do município que, por vezes, deixava que todo o prestígio se convertesse em arrogância ácida. Em um autoritarismo desmedido que me tirava do sério.
Seus olhos claros perfuravam minha alma assim como as gotas de chuva perfuravam os ventos. O rosto severo exigia explicações rápidas. Uma desculpa plausível para o meu atraso. Engoli em seco, sem perder nosso contato visual, e disse, da forma mais clara possível:
- O treino atrasou. 
Ele me analisou de cima a baixo. Seu semblante não parecia nada satisfeito com o que via. Tênis esfarrapados, cabelos molhados, camisa amassada. Eu era a imagem cuspida do desleixo. Do molambo relaxado que nenhum rapaz respeitável deveria ser. 
- Você tem quinze minutos, Justin Rosenberg, para me aparecer aqui com uma roupa decente. – Falou frio, seco. O corpo imóvel. Seus olhos, no entanto, demonstravam que ele estaria disposto a deixar a a postura passiva caso eu me atrasasse ainda mais. 
Wilfried me detestava. Odiava meu jeito, minha voz e até mesmo minhas feições. Via em mim o fruto de uma desobediência, de um acidente. Eu era um desastre, um acontecimento catastrófico que nunca deveria ter acontecido. Que jamais deveria ter corrompido o lar sacro da família Rosenberg. Eu era vítima de seu asco e ojeriza por ser o neto mais velho, aquele que, supostamente, deveria levar adiante os negócios da família. 
Meu nascimento foi um escândalo. A ramificação Bacelar, segunda mais próxima da vertente principal da casa Rosenberg, pretendia que seu primogênito voltasse a ter o “sobrenome da rosa”. Almejava que uma das filhas de Wilfried se casasse com um Rosenberg de “sangue puro” e desse a luz a um rapaz. Aquele que herdaria maior parte da fortuna da família. Era por isso que meu avô esperava. Que, quando fosse a hora certa, sua filha mais velha, Alma, fosse a escolhida para o casamento arranjado. Ela seria a responsável por dar a luz ao neto de ouro, pelo qual o patriarca tanto esperava.
O azar de Wilfried, na verdade, começou quando um forasteiro se mudou para a cidade. Orlando era um andarilho revolucionário. Um bardo que adorava cantar a liberdade, e que, por uma ironia do destino, acabou se tornando a paixão de Alma. E desse amor proibido, fadado ao fracasso, eu nasci. O primogênito da casa Bacelar. Um Bieber
Atravessei a sala sem cumprimentar nenhum dos meus familiares. Já eram quase sete horas, o horário da missa. Se nós, a “primeira família”, não chegássemos cedo, provavelmente seríamos vistos como desaforados. 
Aquela era a ocasião ideal para meu avô mostrar suas falsas preocupações e promessas de melhora. Para mostrar uma sensibilidade afetada, que lhe traria votos nas urnas quando tentasse a reeleição, no ano seguinte. E minha presença era crucial. Meus sorrisos, minhas expressões de dor pela tragédia ocorrida. Eu, o primogênito, teria que bancar o papel do bom moço. Do rapaz respeitável que todos sabiam que eu não era. A atuação fazia parte da política, era o que o vovô sempre dizia. 
Entrei no quarto em um rompante, retirando rapidamente minhas peças de roupa. Aquele evento significava muito mais do que uma boa campanha para meu avô. Significava muito mais do que uma reeleição estúpida, ou do que as cartas de admiradores que ele sempre recebia. A celebração da noite poderia ser não apenas um momento de alívio para os cidadãos, como o estopim para uma guerra civil. 
A população de Primaveras Amargas se mostrava tão frágil quanto uma pirâmide feita de cartas. Qualquer movimento errado poderia ocasionar sua ruína.

Fomos em três carros. Daqueles escuros e pomposos, que exibiam com arrogância a posição privilegiada dos donos. Meus avós e prima foram no primeiro carro. Tios e primo no segundo. Eu e minha mãe, Alma, no terceiro e último. 
Pouco tentei puxar assunto durante o trajeto. Desde a morte do meu pai, eu não reconhecia mais a mulher ao meu lado. Não reconhecia aquela Alma como a senhora doce e gentil que me criou até os dezesseis anos. Não via em seus olhos, tão azuis quanto os de Wilfried, a ternura com a qual eu era acostumado na infância. Eu costumava a pensar - quando não estava entorpecido - que eu era órfão. A mãe que eu conhecia havia morrido junto com meu pai. Havia sido levada junto com ele.
Sorri gelado durante o percurso, imaginando o quão patética era a minha carência. Me visualizei saindo do veículo às pressas e correndo até alguma loja de conveniência. Alguma que me pudesse vender um forte absinto vencido. Inspirei lentamente quando o carro estacionou na porta do templo.

Adentrei os portões da enorme Igreja. Observei todas as pessoas que já estava presentes. A naves estavam cheias de cidadãos chorosos e preocupados. As vestes negras, solenes. Olhos completamente apavorados, que eram substituídos por lampejos de esperança assim que meu avô lhes dirigia a palavra. 
Alguns olhares se levantaram para mim enquanto eu atravessava o tapete vermelho, em direção a um dos primeiros bancos do santuário. O banco reservado para a “primeira família”, onde meus familiares já estavam sentados. Senhoras me olhavam com desgosto. Homens, com nojo e desconfiança. 
Eu até diria que estava acostumado com caretas de afronta, mas aquelas eram diferentes. Completamente diferentes. Além de me acusarem dos meus conhecidos mal feitos - aqueles que eu trazia com orgulho, como se fossem uma medalha esportiva – havia algo a mais. Uma suspeita e covardia que me deixavam intrigado. Que me conectavam diretamente aos boatos mencionados por Ivan, mais cedo naquele dia. Fofocas de que o culpado pelas atrocidades em Primaveras Amargas era um Rosenberg.
Lancei um sorriso seco para as pessoas que me ofendiam com o olhar. Não me espantava que o primeiro suspeito de sua lista precoce fosse eu. Justin Bieber, o delinquente facínora. O rapaz tão íntimo do desastre de dois anos atrás. O anti-Morgenstern assumido. 
Terminei minha andança chegando ao banco reservado para minha família, a família Bacelar, enquanto meu avô me acompanhava com o olhar mordaz. Ele já estava sentado em seu lugar, e seu semblante não parecia nada satisfeito com o sorriso sarcástico que eu levava no rosto. Minha avó, mãe e tios olhavam para baixo, com medo de se intrometerem no clima de agressividade entre Wilfried e eu. 
- Precisamos conversar. – Meu avô disse, levantando e se dirigindo para um dos cantos da Igreja, onde ninguém nos ouviria. 
Coloquei as mãos no bolso da calça social e fiz o mesmo caminho. Se ele iria reclamar de alguma coisa, como seu humor escuro indicava, com certeza não era das minhas vestes. Não. Eu estava totalmente de acordo com a ocasião. “Perfeitamente decoroso”, como minha avó disse. Eu usava um paletó preto por cima de uma blusa rolê da mesma cor. A calça e o sapato combinando. As peças perfeitas para a figura do bom moço artificial que eu estava prestes a atuar. 
Meu avô me encarava com seus olhos azuis severos. A contrariedade de seu rosto gritava, como sempre, que eu era o maior de seus fracassos.
- Gostando ou não, Justin – ele começou a dizer. A voz baixa e constante, de forma que mais ninguém pudesse participar da nossa conversa. – você é o herdeiro dessa família. O próximo líder da casa Bacelar, que precisa ter certas responsabilidades e honrar certos compromissos. – Apenas analisei sua feição, sem ideia de onde ele queria chegar. – O povo tem muitas suspeitas, meu neto. Não apenas acreditam que o assassino possa ser um Rosenberg, como acreditam que esse, diferentemente do de dois anos atrás, seja um impostor. 
- Estou ciente. – Respondi no mesmo tom.
Meu avô voltou a me analisar de cima a baixo, como ele tinha feito logo após minha chegada em casa. Dessa vez, no entanto, seus olhos pareciam mais satisfeitos com o que viam. 
- Padre Afonsino me chamará para fazer um discurso. – Murmurou. – Um discurso encorajador, sobre fé e esperança para as pessoas de Primaveras Amargas. – Consenti, sem me surpreender. – Quero que você faça o mesmo.
Engasguei com a própria saliva. Não, não, não. O que meu avô estava pedindo era completamente insano. Totalmente fora da realidade. As pessoas na rua zombavam de mim. Me tinham como modelo do que nunca se deveria ser. Eu era o representante perfeito dos pecados humanos, e o que Wilfried me pedia era que eu ficasse de pé, em frente à população inconsolável, dentro de uma Igreja, para fazer um discurso encorajador. Impossível.
- Eu não acho que seja... 
- Você não tem que achar, Justin. – Ele cortou. – Você tem que fazer. Eu posso conter as lamúrias das pessoas que pensam que o culpado é o mesmo. Que o mesmo criminoso voltou a assolar Primaveras Amargas. Mas e quanto a população jovem? E quanto àqueles que acreditam que esse assassino é um novo e inexperiente? – Ele esperou uma resposta minha, que não veio.– Quanto a esses eu nada posso fazer. Mas é aí que você entra. Os jovens serão o seu público alvo. Utilize expressões educadas, mas comuns a eles. Diga algo que eles entendam, que lhes sirva como estímulo para continuar na cidade. – Wilfried estendeu suas mãos grossas até meus ombros. Apertou-os de forma pouco delicada, me forçando a olhar ainda mais em seus olhos esbugalhados. – Peça uma trégua ao assassino, Justin. Prometa que não há nada a temer se ele parar de atacar nossos cidadãos. – Minha respiração parou. De todas as coisas loucas que meu avô tinha me dito, aquela com certeza tinha excedido as demais. Era o pedido mais estúpido em sem nexo que ele já me havia feito. - Implorar o seu perdão é a única maneira de salvar Primaveras Amargas.
Continuei estático, olhando para seu rosto enrugado. 
Pensei em abrir a boca algumas vezes para recusar a oferta, mas não vi forças. Wilfried, observando a tensão emanada por nosso momento ali, no canto da Igreja, me envolveu em um abraço teatral. Daqueles aos quais ele só se submetia em ocasiões públicas de extrema importância. Retribuí incerto, enquanto ouvia um sussurro arrastado, saído dos lábios brancos do meu avô:
- Você não tem escolha. 

A missa de sétimo dia estava acontecendo há uma hora. O Padre Afonsino, vez ou outra me lançando um olhar acusatório – daqueles que eu normalmente amaria -, fazia seu discurso emocionado. Falava sobre Deus, sobre amar uns aos outros até mesmo nos momentos mais difíceis e sobre a importância da união em ocasiões tristes como aquela. Falou sobre a médica, uma Morgenstern cheia de valores e conquistas, que não merecia ter perdido sua vida de forma tão trágica. Relembrou a série de assassinatos da década de quarenta, que dizimou a vertente principal da família Scharf, e a chacina que ocorreu há dois anos. Por fim, em meio a rezas e soluços, convidou meu avô para subir ao altar. 
Meu avô falou algo sobre sermos uma grande família. Algo sobre não existir Morgensterns, Rosenbergs ou outros clãs que habitavam Primaveras Amargas. Falou que éramos parte de uma única entidade, e que deveríamos aguentar bravamente as tempestades que ainda estavam por vir. 
O discurso era bonito, bem formulado. Era possível ver que estava alcançando seu objetivo ao comover os fiéis. Fazia com que lágrimas de esperança escorressem por seus semblantes assustados. Tudo muito perfeito, tudo muito emocionante. O discurso do prefeito Bacelar só tinha um ínfimo... Digo, um único problema: não mencionava nada sobre se render ao assassino. 
Dei um sorriso sombrio. Eu devia ter suspeitado, na verdade. Meu avô nunca faria nada que pudesse sujar sua imagem de defensor dos inocentes. Embora a ideia de implorar por perdão tivesse sido toda dele, o rosto por trás da proposta não poderia ser o do grande Wilfried Bacelar, não. Ele não seria o covarde a propor a rendição, afinal de contas, ele era um justiceiro. Eu, por outro lado, já conhecido por minha mentalidade transviada, não veria problema nenhum em agregar mais essa qualidade a minha gama de bons adjetivos. O vagabundo, o delinquente, o pervertido, o covarde
Lágrimas dramáticas escorreram pelo rosto do meu avô. A população, alienada, se permitiu chorar junto com ele, exaltando sua sensibilidade. Ele pediu alguns minutos para se recompor, e eu não vi como aquela situação poderia ficar mais ridícula. 
- Desculpem, senhoras e senhores. Eu não pretendia me emocionar tanto. – Oh, foi uma surpresa para mim também. – Agora, meu neto gostaria de dizer algumas palavrinhas. Peço para que, por favor, recebam-no com a mesma hospitalidade que me receberam. – Seus olhos azuis se voltaram para mim. – Por favor, Justin.
Sussurros se espalharam pela Igreja, se transformando em uma mistura de vozes em total desordem. Me levantei devagar, voltando, por alguns segundos, meu rosto para a plateia. Os mesmos olhares que antes me condenavam agora me assistiam assustados. Me observavam subir ao altar em total expectativa e excitação. Provavelmente se perguntavam o que eu poderia falar, o que poderia sair dos meus lábios pecaminosos que pudesse acalmar os corações inquietos. 
Segurei o microfone que estava nas mãos de meu avô. Ele me lançou um sorriso afável, que eu tentei retribuir com a melhor encenação possível. 
Eu me sentia como se estivesse prestes a assinar minha sentença de morte. Concordar com a ideia de submissão do meu avô seria abrir mão da única virtude que ainda me restava. Minha coragem, valentia. Se havia algo que me diferenciava de um homem morto, era o meu ímpeto de promover a justiça, mesmo que muitas vezes eu fosse contrário a ela. Cadáveres não pensavam, cadáveres não tinham valores próprios, e, se eu pronunciasse as súplicas em voz alta, eu seria como eles. Teria vendido minha alma ao diabo.
Olhei para os rostos aflitos a minha frente, esperando pelo começo do discurso. Procurei apoio nos olhos da minha mãe, só para encontrá-los vazios, desmanchados. Eu estava completamente sozinho ali em cima. Tão solitário quanto eu de fato era.
- Meu nome é... – Minha voz falhou a tempo de eu perceber o quão idiota seria a minha introdução. – Para aqueles que não sabem, meu nome é Justin Bieber. – Respirei fundo e tornei a olhar para o meu avô. Ele esperava de modo paciente que eu prosseguisse com o meu discurso infame. Voltei meus olhos para a população desolada e deixei que meu ego me levasse. Deixei que o bom e velho Justin assumisse o microfone. – Talvez vocês me conheçam por outros nomes. Encrenqueiro, pervertido, vagabundo. Até mesmo fornicador, se preferirem. – Vi a cor sair do rosto do Padre Afonsino e segurei um sorriso malandro. – Entendo que vocês esperam que minhas palavras sejam insensatas. Sou errado, profano, ordinário. – Os olhos do meu avô se fecharam em desaprovação. As pessoas me olhavam ultrajadas. – Mas sou humano. Eu sei o que os familiares e amigos de Ameire Morgenstern estão sentindo. Entendo porque, há dois anos, era eu quem estava sentado em um dos bancos da Igreja. Era eu aquele com o rosto molhado, os olhos sem esperança. Eu também perdi alguém. – Falei mais baixo, e todos os olhares se tornaram mais receptivos à minha imagem. – Não estou aqui para medir meu amor, muito menos para julgar a tristeza de vocês. São imensuráveis, eu sei. Quem me foi tirado deixou um rombo enorme em meu peito, e tenho certeza que Ameire também deixará em cada pessoa que teve a oportunidade de conhecê-la. Por isso, não podemos deixar as coisas como estão. Não podemos permitir que mais dos nossos entes queridos tenham a vida roubada. Que mais corações sejam esburacados pelos assassinatos vis que atormentam nossa cidade. – O peito do meu avô se encheu de orgulho. Os olhos da plateia, de determinação. – Portanto, em nome de toda a cidade de Primaveras Amargas, em nome do prefeito, meu avô, Wilfried Bacelar – Voltei meus olhos para ele. A adrenalina crescia em minhas veias enquanto pensava nas palavras que eu estava prestes a pronunciar. No caminho sem voltas que eu entraria assim que a frase fosse formulada. -, eu tenho um recado para o assassino.
O rebuliço tomou conta da Igreja de Santa Helena. As pessoas se moviam inquietas nas cadeiras, enquanto o prefeito, com um sorriso vitorioso no canto dos lábios, fez sinal para que eu prosseguisse. Suspirei, juntando toda a coragem necessária para falar. Para soletrar exatamente as palavras que eu queria. Sorri fraco. Aproximei o microfone dos meus lábios, focalizei um ponto qualquer na multidão e deixei que minha língua rolasse. Minha feição estava obstinada, a mente livre de qualquer contradição. 
Aqui se faz, aqui se paga. Obrigado.

A audiência, meu avô, o padre. Por um momento, acreditei que até as paredes do santuário me olhavam horrorizadas. Todos os presentes, até mesmo as crianças, estavam com os queixos caídos de surpresa. De espanto pela minha declaração gritante. Os olhos projetados, as bocas escancaradas. Me olhavam como se eu fosse a maior das aberrações e eu não pude deixar de sorrir singelo. 
Desci o altar com passos leves e sem nenhuma dor na consciência. Encaixei o microfone de volta na mão petrificada do padre e caminhei até meu lugar, sendo seguido pelos passos esbaforidos de Wilfried. 
Eu não me arrependia. De forma alguma. Anunciar na frente de todos que o criminoso seria punido por seus atos foi uma glória. Uma passagem só de ida para a aventura que eu considerava há anos. Um ingresso para um jogo mortal, sanguinolento, de mistérios e assassinatos, no qual só se podia pagar de uma forma: com a vida
Uma gargalhada maníaca ecoou em meu interior. Essa seria a maior anestesia que eu poderia ter escolhido. A maior fonte de adrenalina e sofrimento.
Sorrateiro, meu avô agarrou meu braço. Firme e discreto. Daquela maneira, nenhum dos seus eleitores suspeitaria que ele me agredia com seus dedos em forma de garras. Inclinei a cabeça para trás, encontrando seus olhos mordazes atacando os meus. O sorriso inocente ainda brincava em meu rosto. 
- Lá fora. Agora. – Ele rugiu por entre os dentes. 
Fechei o sorriso de imediato e lancei um breve olhar para a minha mãe. Ela me fitava com os olhos sofridos, impotentes. Seus lábios tremiam como se ela quisesse falar alguma coisa, impedir, mas ela não conseguia. Alma não tinha forças para isso. Respirei fundo, puxando bruscamente meu braço da mão do meu avô. Arrumei o paletó e me esgueirei até o canto da Igreja, seguindo por ali até o portão de saída. 
Eu sabia o que esperava por mim. Sabia o que eu encontraria ao cruzar aquela porta com Wilfried. Mas eu não ligava. Ter me lembrado, nem que fosse por questão de segundos, dos fatídicos acontecimentos de dois anos atrás, fez com que eu precisasse urgentemente de uma anestesia. Algum entorpecente que pudesse ser injetado em minhas veias ou aspirado como uma droga. Eu não queria que as memórias sinistras voltassem a povoar meus pensamentos, e, para isso, eu sabia que meu avô me daria o que eu queria. A dor. Uma tortura lancinante que seria capaz de calar as vozes da minha mente. 
Assim que me coloquei do lado de fora da Igreja, longe da vista de todos, voltei meu rosto para trás e abri os braços. Abri meus braços receptivo para o que quer que Wilfried tivesse reservado para mim. 
Sorri para ele, como um incentivo.
- Por favor. – Supliquei.
E eu não precisei dizer mais nada. Quando percebi, os dedos fechados de meu avô já colidiam contra a minha face. Arrastavam minha bochecha, amassavam meu olho e torciam o meu nariz, me fazendo desequilibrar por um momento. O sabor metálico de sangue preencheu a minha boca, e eu fiz questão de saborear com a língua aquela sensação tão odiosa que chegava a emudecer minhas vozes internas. 
Esperei que Wilfried recolhesse o punho, depois levantei meus olhos vazios para encará-lo. Seus dentes estavam apertados uns contra os outros. Os olhos e as sobrancelhas muito unidas.
- Você nasceu podre. – ele rugiu. Me olhou bem nos olhos com desprezo. Com todo o nojo que sentiu quando viu meu ultimato sendo proclamado em seu nome. – Podre como seu pai.
Ele esperou que eu tivesse alguma reação, mas eu nada falei. Continuei olhando para seus olhos, sem nem me preocupar em decodificar o significado de suas palavras. O homem, por fim, ajeitou seu terno de linho, respirou fundo e me deu as costas. Entrou novamente na Igreja e desapareceu de vista.
Movi minha mandíbula com cuidado, analisando o estrago que lhe havia sido feito. Fechei os olhos prestando atenção na pressão exercida sobre minha bochecha. No latejar desagradável do meu nariz. As palavras de Wilfried, enfim, permearam em meu cérebro e eu vi que ele tinha razão, no fim das contas. Eu era realmente podre. Estragado como o meu pai. Eu não pertencia a Primaveras Amargas. Tampouco pertencia a qualquer outro lugar do mundo. 
Fechei os olhos e inspirei durante alguns segundos. A chuva entrava em meus cabelos, escorrendo pelo rosto e lavando meus machucados. Naquele momento, sentia como se eu pudesse acabar com a minha própria vida. Como se eu pudesse ser o responsável pelo meu último suspiro só para me encontrar com eles. As pessoas que eu mais amava e que agora eram inalcançáveis. 
Eu era um eterno deslocado. Um artista sofredor destinado a se adequar aos tons depravados do mundo. Eu não tinha carinho, amor, amizade. Não conseguia pensar ali, no meio das gotas agressoras de chuva, em alguém que pudesse manter meu coração batendo. Em alguém que pudesse fazer com que todas as minhas tristezas desaparecessem.
E então eu abri os olhos.
De um segundo para o outro, o mundo desapareceu. A chuva violenta não mais feria a minha pele e a dor, aquela banhada pela água da tempestade, se dissipou. 
Os olhos de Elizabeth estavam grudados nos meus. Os cabelos castanhos, maiores do que eu me lembrava. Bochechas vermelhas, lábios semiabertos. 
Observei seu equilíbrio titubear. Algo em seu corpo me era totalmente novo. Algo não combinava em nada com a garota por quem eu tinha me apaixonado. Me fixei em seus traços novamente e encontrei, no lugar dos olhos verdes, antes doces e gentis, uma frieza cruel. Seu corpo, o corpo que eu adorava e que tanto sonhei em tocar, estava mais magro e mal cuidado. Elizabeth, assim como eu, tinha perdido o seu vigor com os anos. Tinha perdido toda a alegria que várias vezes me encantou.
Lá estava ela, como uma nova garota, me encarando perplexa. 
Fechei meus lábios e engoli em seco. Esperei que ela dissesse alguma coisa, mas suas palavras pareciam tão distantes quanto as minhas.
Forcei minha garganta e abri brevemente a boca, deixando que um som baixo, um silvo, escapasse por ela:
Oi.


Alvura Púrpura, por lan.Onde histórias criam vida. Descubra agora