Capítulo II

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Naquele momento, sentados ao balcão da lanchonete mais próxima do hospital público da cidade, aguardavam Sofia se recuperar.

Fábia, a primeira e única amiga de Sofia desde que voltara com a avó para Ponte Verde, sua cidade natal, havia acabado de sair da aula de aeróbica e estava indo se encontrar com ela quando notou um rapaz retirar da piscina o corpo desacordado da amiga.

— Não sei como te agradecer. Se você não estivesse aqui... não gosto nem de imaginar o que teria acontecido.

— Ela nos deu um grande susto — o rapaz limitou-se a responder, fixando o olhar na xícara de café.

A garota já o conhecia. Havia sido instrutor de kung fu no Clube Mar Azul. E na Faculdade Ponte Verde, ele e um amigo tinham sido bem populares até alguns meses atrás, quando tocavam em uma banda de rock clássico que embalou os universitários em diversas festas. Hoje, sentado com a cabeça baixa, encarando seu café, era uma sombra do Tristan que antes fazia tantas garotas suspirarem, inclusive ela própria. Ele lhe parecia cansado. Esgotado talvez fosse a palavra mais apropriada. Os cabelos negros caídos sobre o rosto ocultando os olhos orientais, as linhas quadradas do maxilar retesadas, os ombros encurvados, os lábios apertados numa linha fina, fria. Ainda era bonito, mas muito do seu brilho havia se apagado.

— É estranho isso ter acontecido. Sofia treina mergulho em apneia há um tempão. Está acostumada a ficar até cinco minutos embaixo d'água — disse tentando puxar assunto, os dedos enrolando de forma mecânica um cacho de seu curto cabelo tingido de azul-marinho.

Tristan deu de ombros e não respondeu. Ela conhecia o motivo da mudança. Todos da faculdade sabiam. O rapaz havia passado quase um mês inteiro afastado das aulas. Tentou retornar por alguns dias, mas acabou trancando a matrícula. A perda da namorada Cecília, vítima de uma doença terminal, fora um golpe duro de suportar.

***

A lua brilhava alto no céu quando a moça de cabelos azuis estacionou seu velho automóvel na vaga disponível, a poucos metros de distância da casa de Sofia.

— Tem certeza de que se sente bem? Se quiser, posso dormir aqui hoje com você.

A jovem se comoveu com o tom preocupado na voz da amiga. Sentia-se um pouco culpada pelo susto causado a ela e ao seu misterioso herói.

Algumas horas atrás, quando abriu os olhos na enfermaria do hospital, um aroma suave de sândalo alcançou suas narinas e a acalmou do choque inicial de se ver rodeada pelas paredes brancas e de notar a agulha do soro perfurando seu antebraço. Lembrava-se daquele cheiro. Um sentimento de nostalgia havia lhe trazido lágrimas aos olhos.

— Estou bem — afirmou com convicção. — Amanhã você me apresenta ao meu anjo da guarda.

— Procure ter uma boa noite de sono — respondeu com um abraço afetuoso. Assim que Sofia saiu e bateu a porta do carro, mais forte que o necessário, observou, Fábia enfiou a cabeça pela janela. — Graças aos céus seus cabelos secaram, caso contrário, sua avó poderia perceber algo.

— Nada — respondeu com uma careta. — Ela sabe sobre meus mergulhos. Só não precisa saber que quase me afoguei.

Sofia passou os dedos pelos longos cabelos e revirou os olhos com um muxoxo, sentindo o tufo embolado nas pontas. A amiga sorriu em resposta e deu a partida.

O cheiro de maresia impregnado no ar noturno era uma deliciosa acolhida. Jamais se cansaria dele. Ponderou sobre como foi acertada a decisão que tomaram de voltar à Ponte Verde após a morte do avô. Aquela era a cidade delas, a cidade onde nasceram, e onde tinham a liberdade de ver e sentir o mar sempre que quisessem.

ÁRIA DE YU - Os Talismãs de Jade (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora