Capítulo I

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"Nenhum guerreiro nasce pronto. Assim como ocorre com sua arma, precisa arder no fogo e afundar na água, alternadamente, enquanto sofre árduo processo de dobras e golpes. Seu valor será medido por sua capacidade de resistir e se adaptar ao seu propósito. Antes de tudo, porém, é necessário conhecer seu propósito."

(Bardo Paladino, Fábulas desconhecíveis dos Dragões de Jade).

***

Sol, brisa e água, a combinação perfeita para fazê-la se acalmar nos dias após noites de pesadelo. Sofia alongou os braços e semicerrou os olhos ao levantar o rosto na direção do sol. A alta temperatura dos últimos dias havia deixado sua marca ao tornar as sardas do nariz mais evidentes e dourar as pontas dos longos cabelos cor de mogno. Era por volta das quatro da tarde, e o clima ameaçava abrandar. O Clube Mar Azul não estava muito cheio naquela tarde, e como não havia aulas de natação agendadas no horário, poderia usufruir da piscina sem expectadores.

Dobrou o corpo esguio e com agilidade se atirou sobre a água. Gostava da sensação refrescante em sua pele, da forma como a água parecia preencher cada um de seus poros. Era assim desde criança.

Começou com uma brincadeira infantil alguns anos atrás, enquanto esperava o início das aulas de natação; tempos depois, tornou-se uma necessidade. O próprio instrutor de natação identificou, naquela época, a curiosa ligação da menina com a água e passou a treiná-la no mergulho em apneia. E não era a competição o que a motivara a continuar na atividade, chamada apneia aquática. Gostava era da parte de ficar submersa, imóvel, apreciando aquela sensação de paz. O mergulho a ajudava a acalmar a mente agitada. Encontrava conforto na sensação de estar mais perto de conseguir respostas ali, submersa.

Naquele exato momento, uma insistente dor de cabeça aumentava sua ânsia por se ver cercada pela água. Sorriu ao imaginar a avó, caso estivesse por perto, aconselhando-a a deixar o mergulho para outro dia.

"Hoje sim, vozinha. Mergulho é o meu melhor remédio. Logo essa dor vai embora."

Massageou brevemente as têmporas antes de ligar o cronômetro do relógio e permitir que a água a escondesse.

Um expectador, a poucos metros de distância, fixou os olhos nos movimentos dos cabelos ao redor do rosto dela. As ondulações das mechas castanho avermelhadas assemelhavam-se a tentáculos de água-viva e conferiam uma visão mística.

Sofia desceu até o fundo da piscina, envolveu os joelhos com os braços e se permitiu usufruir de cada segundo da paz proporcionada pela água morna. Como já esperava, a dor de cabeça deixou de incomodá-la na mesma hora.

De algum lugar, no fundo da mente, uma música a envolveu. Ela a conhecia muito bem. Não se lembrava de uma época em sua vida onde não tenha estado presente. Mesmo nas memórias mais antigas de sua infância, em algum momento de seus sonhos frequentes, uma aveludada voz feminina entoava palavras num idioma que nunca conseguiu distinguir. Uma melodia gostosa, uma sensação tão boa, que lhe enchia o peito e a fazia se acalmar.

"Os pensamentos parecem seguir sempre a mesma sequência quando estou submersa, primeiro essa música preenche minha mente, mesmo quando as preocupações são outras, depois me vem à mente Li. Ah, Li, meu velho amigo. Cada vez que penso em você é como abrir um cadeado para o abismo. Um abismo que vive em mim."

Sentia como se não tivesse se passado tantos anos. Era capaz até mesmo de ouvir sua própria voz infantil de quando o vira pela última vez.

"Eu prometo voltar, Li. Meu avô até pode querer se mudar, mas um dia eu volto. Sempre voltarei."

"Vou te esperar, Yu."

As promessas ecoaram na sua mente na mesma frequência de uma nota melancólica da música. Aquilo fez aumentar a pressão em sua cabeça e a dor retornou com maior intensidade. O ar ameaçou faltar. Tentou um movimento com as mãos para retornar à superfície, mas o corpo não reagiu. A escuridão se dissipou ante os olhos arregalados de incredulidade e foi substituída pela imensidão azul. Sua boca se encheu de um sabor salgado e a dor em seus pulmões aumentou.

"Isso é real? Um sonho ou uma memória?"

Para sua surpresa, não tinha medo. Parecia natural estar ali, como se seus pulmões precisassem ser testados ao extremo. Por mais insano que lhe parecesse, uma certeza invadiu sua mente: poderia respirar.

Ao longe, ouviu a voz de Li, mas também ouviu uma voz feminina, as duas se misturavam e tudo ia ficando mais e mais longe.

"Yu! Volte, por favor!"

"A ária é a sua resposta."

As vozes continuaram a embala-la no fundo da piscina, quase não sentia mais dor no peito, e antes de tudo ficar completamente escuro, sentiu mãos firmes a agarrarem e a retirarem da água, foi quando perdeu os sentidos.

ÁRIA DE YU - Os Talismãs de Jade (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora