O recebimento

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– Você está linda. – meu marido diz aparecendo atrás de mim pelo reflexo do espelho ao qual eu me olhava por alguns minutos.

Parada em frente a minha imagem, enxerguei uma mulher sem graça, esquecida por si mesma. Um rosto pálido com ausência de maquiagem. Cabelos presos por não ter tempo de hidrata-los. Roupas largas e velhas, por não ter momentos ao qual devo me arrumar. As únicas vezes que me vejo diferente disso, é quando estou de farda e o corado do sol da tarde  disfarça esse rosto morto.

– O que você acha de sairmos para jantar fora hoje a noite? – pergunto afim de reatar a felicidade daquele casal monótono preso a uma rotina que vinham seguindo há anos.

– Jantar fora? E os monstrinhos? Não podemos deixa-los sozinhos. – ele respondeu surpreso.

– E se ficassem com a Sra. Shannon? Tenho certeza que ela cuidaria deles pra gente.

– Você sabe que a Sra. Shannon é meio louca. Vai encher a cabeça deles com um monte de histórias tenebrosas da infância dela. Nem sei como ela consegue lembrar.

– Ela não é louca, só é... velha.

– Por que você não pede pra sua mãe? – ele sugere.

– David, você sabe que eu não gosto de pedir nada pra ela.

– Mas ela gosta deles. Nossos filhos são quietinhos. É só coloca-los em frente à TV que logo mais pegam no sono e não darão nenhum trabalho.

– Não, nem pensar. A última vez que liguei pra ela foi para dar feliz natal atrasado.

“ – Oi, mãe. Tudo bem? Então... Estou ligando para dar feliz natal, ta?

– Amber? Você está bem? O natal foi semana passada.

– Ah, foi? Desculpa, estive muito ocupada. Tenho que cuidar dos gêmeos e da casa. Sabe como é, né? [...]’’

      Essa foi a última conversa que tivemos. Uma conversa desajeitada pela falta de intimidade, e sem marcas de afetividade que pudesse provar uma relação de mãe e filha. Desde a morte de meu pai, eu e ela não nos demos muito apoio. Então tive os gêmeos. E meu casamento. E minha própria casa. Não fiz companhia a ela quando mais precisava, mesmo que fosse por causa de minha gravidez, eu a deixei num momento de fragilidade e desamparo, e me sinto um tanto envergonhada para me desculpar com ela, reforçando em mim, uma culpa incurável e um arrependimento incontestável. 
     Mais uma vez me encontro com o telefone na mão, montando em minha mente um bocado de possibilidades para iniciar uma conversa afim de desencadear um pedido de salvação. Ela saberia de cara. E qual seria a probabilidade de uma negação? Quais palavras seria melhor eu não citar, já que talvez pudesse causar uma impressão de interesse fazendo com que ela sinta-se traída novamente? É algo difícil de pensar e fazer, quando se trata dela. Mas a coragem surgiu repentina quando me lembrei do propósito daquela ligação. E logo apareceram palavras desajeitadas que tropeçavam da minha boca.

– Mãe, Tudo bem? Como vão as coisas por ai? 

– Amber? Ligou para dar feliz ano novo atrasado?

– Ano novo... É!!! Foi isso. Estive ocupada, como você sabe.

– Então é só isso mesmo?

– Só isso... É!! – David chamou minha atenção na intenção de me fazer chegar ao ponto que queríamos. – Na verdade... Mãe. Eu gostaria de aproveitar pra perguntar se você poderia cuidar da Crystal e do Wilson hoje a noite pra mim.

– Ah, agora está explicado. Ou você liga pra me desejar felicidade atrasada em alguma data comemorativa  ou pra me pedir algo quando precisa. E agora foram os dois de uma só vez.

– Mãe, não começa. Isso não é verdade. Um pouco, talvez... – falei me lembrando das últimas ligações que tivemos – Mas... Você vai poder ou não?

– É pra sair com o seu marido?

– Sim...

– Então, não.

– Por favor, mãe. Faz tempo que não temos um momento só pra nós. Estamos precisando curtir um pouco juntos.

– Que horas eu chego ai? – ela suspira um ar de decepção de quem cedeu o que não queria.

– As 21h está bom. Obrigada, mãe. E feliz ano novo.

   Após desligar o telefone, infelizmente não é meu dia de folga, alguém tem que trabalhar desde que meu marido perdeu o emprego. Chegou bêbado no serviço e socou a cara do  chefe. Foi preso, e paguei a fiança. Assim, então, nenhuma empresa quis contrata-lo.
    Me despeço ansiosa para retomar os tempos de adolescente, quando saiamos para dançar e curtir um bom som enquanto estávamos apaixonados. Ao entrar no carro, um cheiro doce, nada igual a todos que eu já havia sentido antes em toda a minha vida, empreguina minhas narinas. Observo tudo ao meu redor e a única coisa que vejo de diferente é uma caixa com o meu nome ao lado oposto do meu banco. Quem havia colocado isso aqui? David? Mas não havia sequer algum remetente perdido por ali. Ao retirar a tampa, logo um brilho forte veio em direção aos meus olhos, cegando minhas retinas. O dourado era tudo o que eu podia ver. O material usado para transformar-la tão única era o ouro, mas continha dois lapidados diamantes que ficavam um de cada lado do cano por onde eu a segurava.

Testando-a para checar se havia munição dentro de seu tambor, uma sensação de exuberância, poder e dominação formigou pelas minhas veias. Senti-me como uma mulher indestrutível. Todos os anos de cansaço e esgotamento foram embora como um tiro veloz.

Pequenos brilhos se espalhavam agora pelo meu carro, como vagalumes dançantes. Brincaram em volta de mim até cansarem e pararem para repousar. Letras se formaram através deles trazendo uma mensagem.

“Lady Vanellope”

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