6 - céu estrelado

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A cidade está um caos. Ou estaria, se ao menos eu pudesse vê-la. Mas, sentada nesse banco no topo de uma montanha, bem acima da linha do horizonte, só consigo ver um breu que parece infinito. Não há luz em nem um único bairro; e, ainda assim, consigo te ver: um pontinho vermelho acinzentado em meio a esse mar negro de escuridão.

Posso te imaginar em sua cozinha, a xícara em sua mão repleta com um café tão escuro quanto seus olhos. Você veste uma camiseta polo, como de costume, o que sempre me deixa em dúvida se sua intenção é a de parecer mais casual ou menos informal. Uma mesa redonda se encontra bem no centro do ambiente, refletindo sua personalidade calorosa e aconchegante. Enquanto você anda pela casa, é possível ver seus móveis, dispostos de maneira que abraçam o espaço e tudo que há nele. Gosto de pensar em toda a sua casa, sua mobília, suas roupas - tudo o que te constitui - correspondendo ao que você é: doce, afetuoso, acolhedor.

Penso muito nessas suas qualidades: são tudo o que eu desejava agora. O banco duro de madeira, o vento frio que assobia, afiado, em meu ouvido... O escuro exacerba minha carência, faz tua imagem invadir cada fragmento dos meus pensamentos e eu me encolho, prestando atenção em cada parte do meu corpo que se encosta, fingindo que meu toque, na verdade, é seu.

Sua xícara estaria agora descansando em um aparador enquanto você afaga seu cachorro - um que imagino que você tem. O macio tapete felpudo da sala cobre todo o chão, terminando próximo à porta de vidro da varanda. Se você se sentasse ali, entre as plantas, eu poderia vê-lo: tamanha a sua importância, seria quase como se você brilhasse.

Às vezes, sinto que estou me tornando obcecada por você, que se eu ganhasse uma moeda que você me viesse à mente, eu nunca teria mais do que uma, já que este é um lugar de onde você nunca sai. A ideia de você me acalenta, mas é seguida por um rajada congelante - pensar em sua imagem é também lembrar que é apenas isto que você é para mim, que a única presença que você tem em minha vida se resume a estes constantes pensamentos, que são baseados em falsas ilusões e memórias antigas demais. E eu passo a imaginar qual seria a imagem que eu tenho para você - se é que, ao menos, eu tenho um mínimo de relevância na sua vida para ter a honra de significar algo para você. Afinal, você merece o universo inteiro - e eu sou apenas uma reles estrela.

A visão de você com seu suposto cachorro me recorda do seu abraço - aquele único que recebi certa vez. Foi depois disso que o espaço entre seus braços se tornou o meu lar; e eu só percebi isso porque, desde que você se foi, eu estou com saudades de casa. Mas nem esse sentimento, nem minha vontade de me aproximar de ti me tornam menos desabrigada. Eu busco refúgio em você, mas só recebo portas fechadas na minha cara - isso quando você se dá ao trabalho de abri-las para responder aos meus chamados.

Você já está de volta na cozinha: a xícara foi colocada na pia, o cachorro abana o rabo enquanto te segue e sua atenção se volta para o forno. Dali, sai um doce aroma de biscoitos natalinos assando, trazendo uma sensação de conforto - da mesma forma como sua presença faz. Próxima de você, eu me renderia até mesmo a comemorar essa festa; mas não, você está muito distante de mim. E a minha visão dessa data continua discrepante da dos demais: normalmente, durante o Natal, as pessoas esperam o Papai Noel para entregar os presentes; já eu, só espero que Jesus venha transformar minha água em vinho para que eu possa me embebedar até esquecer da sua ausência - e, se possível, até mesmo da sua existência.

Vez ou outra, algumas poucas luzes voltam a se acender e a cidade se mescla com o céu estrelado: pequenos e escassos pontos brilhantes contrastam com a enorme escuridão. Ainda assim, consigo ver vagalumes sobrevoando entre as árvores que me cercam; a luz deles nem se compara à sua, a presença deles não me faz sentir nem uma porção da companhia que você faria. A solidão persiste por aqui.

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