7 - flores e sangue

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Sinto falta de me aventurar em seu bosque florido. A cor verde me perseguindo incessantemente, fazendo eu acreditar que estou perdida, enlouquecendo. Eu olho para trás e vejo flores; porque não consigo ver essa doçura também à minha frente? Suas pétalas são macias como seda, mas seus espinhos arrancam o meu sangue...

Entre algumas árvores, vejo pendurada uma rede: de longe, parece confortável, um bom lugar para dormir; mas, ao me aproximar, enxergo a armadilha. As cordas, prestes a se romper, me convidam ilusoriamente para um descanso que sei que não terei. E, apesar de ter certeza do trágico destino que me aguarda, o quanto desejo repousar aí! Ceder todas as minhas forças, baixar as defesas e fechar meus olhos, me sentir tão leve como se flutuasse; mas, logo em seguida, cair. Uma enorme queda livre que pareceria nunca ter fim - e, ainda assim, eu me sentiria protegida no seu mundo. O vento teria sensação de um abraço e a água, na qual estou prestes a cair, teria um toque suave, assim como a sua voz.

E quando a queda tem fim, eu encontro milhares de peixinhos coloridos, que passam apressados por mim. Estariam eles me recebendo? A pressa seria fruto da animação em me ver? Não e não. Eles fogem, com medo dos enormes predadores que coabitam com eles naquele vasto lago. E os peixinhos têm sucesso em sua fuga, enquanto eu, fascinada por eles, não consigo escapar e, prontamente, sou devorada.

Porém, se escolho não me deitar na rede, seguindo por outro caminho, me encontro de frente com uma aconchegante casinha de telhado vermelho e paredes cinzas. Entrando nela, me assusto. O lugar que, por fora, se mostrava tão agradável, por dentro, mais parece um açougue: o sangue me cerca por todos os lados, tingindo as paredes e escorrendo pelos corpos dos animais, que não se parecem mais com aqueles seres dóceis que passeiam pelo bosque afora.

A casa consome tudo o que está em seu interior, a fumaça que sai pelo telhado não é de uma bela lareira, mas sim de uma enorme fornalha; e o fogo torra os cadáveres para dar um fim nas inúmeras recordações das mortes que ocorreram ali, produzindo um cheiro tão insuportável que quase entrega a atividade - mas, ainda assim, o resultado é certeiro e todo o abuso é calado. O clima encantador já não existe, a casa não me atrai tanto quanto antes e a vontade é de deixá-la. Mas me sinto tão amarrada quanto aqueles animais, não consigo partir...

As brasas, ardentes, me atingem quando o fogo as faz saltar. Nem mesmo a dor consegue me fazer sair. Eu sinto como se derretesse, partes de mim se espalham e se fundem na casa; já não sei mais onde termina meu corpo ou onde começa o seu. E, assim, eu deixo de me reconhecer. Sem saber quem eu sou, deixo que sua identidade comande o que resta de mim.

Você é um caçador e eu sou apenas mais uma de suas vítimas. Sua doçura nos atrai, mas é apenas um truque para nos aproximar. E você se engana se imagina que a nossa morte é o pior que você faz conosco. O final da sua ternura acompanha o início do seu silêncio, que corrói cada parte do meu coração. A dor é grande e, em certo momento, passo a questionar quem está causando a dor, se é você ou eu. Você parece fazer questão de dizimar cada pedacinho do meu coração, quebrando-o, queimando-o e me fazendo sofrer; de modo que, quando você termina o seu trabalho, eu me sentiria de coração partido - se ainda tivesse me sobrado um. E, depois, eu tenho que viver a minha vida com um buraco no peito que eu não faço a mínima ideia de como preencher.

Mas se conheço tão bem suas armadilhas, porque insisto tanto em cair nelas? Se sei que vou acabar machucada, porque teimo em te seguir? Porque sigo crendo que sentir a dor que você me causa é melhor do que nada sentir? Sempre prefiro me torturar nas mesmas armadilhas que já conheço do que ter que te deixar. E nunca entendo perfeitamente o porquê.

É que a minha vida sempre foi um eterno final de domingo; quando, no meio do descanso, você se lembra de que o dia seguinte é segunda e junto com essa lembrança, surgem as responsabilidades do dia seguinte. Surge um desânimo, acompanhado por uma vontade de que a segunda nunca chegue. E essa sensação me seguiu por tanto tempo, estando presente a todo momento e frustrando cada segundo da minha vida. Isso se manteve até que você chegou, como um sábado, na minha vida: não há preocupação com o ontem, nem com o amanhã; tudo o que importa é aproveitar o agora; e como é maravilhoso esse momento. Mas ele traz um ensinamento: coisas boas não duram.

Se houvesse sol nesse dia, a sua luz me abraçaria. Mas ela é a única que o faz, pois seus braços há muito tempo se distanciaram de mim - se é que, em algum momento, eles me pertenceram. Mesmo quando você não me acompanha, a sua lembrança ainda está comigo por todo o dia; e acho até engraçado como essa companhia faz eu me sentir tão solitária.

Mas, às vezes, acredito que você se parece mais com um dia chuvoso e frio. Nestes, busco refúgio em meio a mil cobertores e uma xícara quente de café. Mesmo com todo a tormenta que há lá fora, me sinto protegida. E é apenas uma sensação, mais uma de suas ilusões, pois o café está envenenado e, dessa forma, você vai me matando aos poucos, para, logo em seguida, me questionar com ar de surpresa "porque você está morrendo?". Sempre me pergunto se seus questionamentos são realmente de dúvida ou apenas ironia.

Como se fosse um espelho, quando olho para você, eu consigo ver todos os meus pecados. E, entre eles, há a lembrança de uma versão mais nova de mim, chorando e se questionando "porque eu destruo tudo que chega perto de mim? Porque tudo que eu toco morre?"; me diziam que, um dia, eu entenderia. Hoje, ainda com os mesmos questionamentos, imagino que, talvez, eu seja aquela que permita que descansem. E meu cansaço é tamanho que começo a pensar que eu deveria me tocar mais vezes.

Você não me ensinou a viver com a sua ausência, mas, pior ainda, nunca me ajudou a seguir em frente com esse vazio. O que deveria ocupar esse espaço? O que eu coloco nele? Eu quero colocar algo nele? Eu quero seguir em frente, pensar no futuro e deixar essas questões todas de lado? Eu, ao menos, quero que esse futuro exista? Porque você faz com que a minha vida seja tão difícil e, depois, me culpa pelas consequências dos problemas que você me causou? Às vezes, são as dúvidas que ocupam o meu vazio.

Algumas pessoas, quando me conhecem, enxergam o caos que eu me tornei e, cegas por uma desnecessária aspiração à herói, decidem que devem resolver o meu problema. Sou alvejada por sugestões sem futuro, que não têm serventia alguma na missão de acabar com o meu vazio. Algumas vezes, algumas dessas sugestões, mesmo que inúteis, ainda me tiram o sono. Uma vez, me disseram para procurar refúgio nas crenças; acredito que tenha sido na boa intenção, mas não paro de pensar que, se Deus sempre nos guia, no final, ele sempre está nos guiando para a morte

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