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-Você precisa ver isso.

Naquela manhã de sábado quando eu encontrei o Matheus na frente da minha casa ele tinha um brilho diferente nos olhos. Eu acordei, como quase todos os sábados, antes dos meus pais e fiquei sentado na sala tomando café e assistindo a um programa que dava dicas de artesanato. Quase todo sábado de manhã, eu me perguntava que tipo de pessoa sentaria na frente da TV com um caderninho e uma caneta para anotar o passo a passo de como transformar uma garrafa pet em um lustre revestido de retalhos de tecido ou papel estampado para embrulho de presente.

Geralmente o programa parecia responder essa minha pergunta mostrando vídeos de espectadores que tinham tentado em casa as dicas que eles davam. Os vídeos embora fossem mal gravados demais para serem ensaiados, e sempre mostrassem uma pessoa genérica demais para ser um ator, nunca me convenciam cem por cento de que fossem reais.

-Olha ai Zeca! Chegou de Mangaratiba o vídeo da Arlete mostrando o porta DVDs que ela fez com papelão e mdf!

Arlete era uma mulher de meia idade, cabelos meio armados e um vestido florido que apertava um pouco na região da barriga. Os óculos dela estavam pendurados por uma cordinha no pescoço e, na frente dela um porta DVDs de papelão e mdf estava em cima da mesa de centro do que parecia ser a sala da casa dela. Ou do estúdio em que ela estava. Tentando simular a sala de casa.

-Oi pessoal, eu sou a Arlete. Eu fiz o porta DVDs que vocês ensinaram no programa passado. Eu achei que o resultado ficou muito bom. Agora eu coloco todos os DVDs aqui de casa no porta DVDs. Muito legal.

Arlete falava de maneira pausada. Exatamente como uma pessoa sem qualquer intimidade com uma câmera falaria. Ou, como um ator interpretaria uma pessoa sem intimidade com a câmera. Talvez Arlete fosse Laverna Cavendish, nome artístico de Laura Medeiros uma atriz de 50 anos que agora ganha a vida interpretando pessoas normais em um programa sábado de manhã.

-E por quanto dá pra vender esse lustre de garrafa PET e retalhos de tecido?

-Olha Mari, geralmente eu vendo por sessenta reais cada...

-Um preço bem legal! Olha aí a dica pra você que tá desempregado, desempregada!

-Sim Mari, e além disso é super sustentável. É reciclagem né.

-Adorei!

Olhei para minha xícara de café quase vazia, o café preto refletiu a minha cara como um espelho e eu me perguntei: por que esses atores sempre escolhem um nome tão estereotipado como Arlete para uma senhora de meia idade que faz artesanato feio? Ao mesmo tempo que é um nome que me parece muito comum para uma senhora assim, Eu nunca, na minha vida, conheci uma Arlete que não estivesse num programa sábado de manhã falando sobre artesanato.

Meu celular vibrou. Era meu amigo que me mandou uma mensagem.

-Cara você não vai acreditar no que eu descobri ontem.

Além disso quem é que tem DVDs hoje em dia? Ou melhor, quem é que tem só quinze DVDs pra guardar num porta DVD?

-Sério você tem que ver isso.

-O que mano?

-Se eu te contar por mensagem você não vai acreditar. Me encontra na frente da sua casa em 10 minutos.

Em menos de dez minutos eu já tinha colocado meu chinelo e meu boné mas, quando saí de casa ele já estava lá me esperando com um brilho estranho nos olhos.

-O que você quer me mostrar?

-Vem comigo.

Ele se virou e começou a andar para longe de mim, descendo a rua. Eu olhei para a janela da sala de casa. De manhã a luz azulada da TV era quase imperceptível e eu só conseguia percebe-la pois sabia que não tinha desligado a TV antes de sair.

-Onde estamos indo?

Quando me voltei para onde Matheus estava ele já tinha desaparecido. Lá embaixo da rua ele virava a esquina com um andar decidido. Corri até alcançar meu amigo e falei:

-Tenho que voltar antes do almoço. Minha mãe vai fazer macarrão.

-Quando você chegar lá, não vai querer mais macarrão nenhum...

-Do que você está falando afinal?

Ele não parava pra me responder e nem olhava pra mim enquanto falava como era o jeito dele. Só continuava andando, olhando para a frente e falando sem nem virar a cabeça.

-Só vem cara.

HWhere stories live. Discover now