VIII

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                Enquanto eu ainda achava que Matheus ia vir flutando e pousar no chão ao meu lado eu não reparei que uma figura me observava do corredor. Só depois que eu desisti de gritar pelo nome dele e levantei os olhos, procurando qualquer coisa que me ajudasse a tirar meu amigo de lá, foi que eu notei. A lâmpada amarelada era muito fraca para que eu visse os traços, mas a forma era de um homem mais ou menos da minha altura. Parado na escuridão, ele só era visível pois seu corpo refletia ainda menos luz do que as paredes do corredor. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa ele se virou e correu. Eu ouvi os passos dele subindo a escada enquanto eu lhe chamava.

-Ei

No momento achei que pudesse ser alguém ou o irmão de Matheus. De qualquer forma talvez ele pudesse me ajudar. Comecei a correr atrás dele escada acima. Uma das tiras do meu chinelo logo estourou e eu cai de cara na escada. Quando eu bati a boca em um dos degraus e senti o gosto de sangue e perdi o fôlego na hora. Tive que ficar deitado por um tempo no chão frio. Tentando respirar. Escutei os últimos passos da pessoa e depois só o silêncio. Ela chegou ao topo da escada numa velocidade impressionante, ainda mais no escuro.

Recomecei a subir com a ajuda da lanterna do meu celular e sem chinelo nenhum dessa vez. Quando finalmente cheguei lá em cima e vi a luz do sol senti um alívio que eu nunca tinha sentido até então. No claro pude ver que a gola da minha camiseta estava toda suja de gostas de sangue. O sangue já tinha secado e não escorria mais da minha boca.

A porta da escada estava bloqueada por um monte de tábuas, latas e outras coisas colocadas às pressas ali. Eu tive que empurrar com o ombro até conseguir abrir um vão suficientemente grande para escapar dali. A parte mais difícil, na verdade, foi pular aquelas coisas sem pisar em nada que pudesse machucar os meus pés descalços. Depois de conseguir, percebi que a porta da frente também tinha sido fechada. Meus olhos acostumados a escuridão das escadas porém conseguia discernir várias formas e coisas naquela penumbra.

Conferi meu celular que estava mesmo sem sinal, mas não era só isso: o relógio não marcava hora nenhuma. Ao invés dos números dois traços - -, um para os minutos e outro para as horas estavam ao lado da frase "no signal". A única luz que eu conseguia ver eram as frestas da porta daquele quartinho que pareciam uma moldura de neon na parede mais distante de mim. Resolvi parar de perder tempo e sair dali o quanto antes para buscar ajuda no mundo real. Ligar para a polícia, para minha mãe ou para alguém que soubesse o que fazer. Sei lá. Avancei na direção da porta com tudo e, para o meu azar, ela abriu sem nenhum tipo de resistência.

A luz da área externa me cegou na hora. Mesmo aquela claridade amarelada de fim de tarde foi demais para os meus olhos que tinham ficado quase uma hora sem ver nada mais forte do que a lanterna de um celular. Não fosse isso talvez eu tivesse visto que, na frente da porta, tinham espalhado um monte de cacos de vidro.

A dor de pisar num monte de caquinhos do tamanho se ervilhas ou coisa parecida é algo que eu nunca tinha sentido igual na minha vida. É diferente de colocar a mão numa superfície quente ou mesmo de espetar o dedo num espinho. Nos dois casos nós tiramos rapidamente a mão do que nos causa dor, por reflexo mesmo. O que geralmente faz a dor ser menor. No caso de pisar em vidro, passado o susto, os cacos continuam fincados nos seus pés, a dor não vai embora não importa o quão rápido se levante o pé.

Logo depois de pisar com me pé esquerdo eu cai para trás de bunda no chão. Ondas de dor iam irradiando da sola do meu pé até a cintura. Acho que eu vi uma vez, num programa sábado de manhã, um especialista falar de como vários nervos nos pés se comunicam com todo o resto do corpo. É possível tratar uma dor na lombar massageando o calcanhar ou algo assim. Me pergunto se a Arlete do porta DVDs alguma vez pisou num caco de vidro.

Puxei meu pé para perto de mim e fiquei ali sentado olhando para aqueles pontinhos irregulares, transparentes, rapidamente se tingindo do vermelho do meu sangue. Ia ser impossível pisar com aquele pé, qualquer peso a mais nele faria os cacos entrarem ainda mais na minha carne. Cutuquei um deles com o dedo. O caco saiu e com ele um fio de sangue riscou meu pé. Cada caco que eu retirava me causava uma dor absurda e manchava ainda mais o chão de cimento de um vermelho brilhante. Eu não tinha tempo para ficar me lamentando porém.

Acho que a adrenalina do momento me ajudou bastante a sentir menos dor por que logo eu já tinha limpado meu pé e já estava tentando andar para longe dali. Eu tinha que me apoiar na lateral do pé o que era difícil e doía muito. Assim consegui chegar até o estacionamento onde o carro amarelo continuava estacionado, mas a porta do passageiro dele estava aberta. Ao chegar mais perto vi que o maço de cigarros tinha sumido assim como o casaco. Ao lado do carro um monte de fósforos queimados estavam caídos.

Me virei para o prédio por onde chegamos e comecei minha lenta caminhada de volta para casa logo descobri que era mais fácil pisar na grama do que no cimento com meu pé machucado.

De longe eu vi que alguém estava no meio da escada de alumínio por onde chegamos, como não dava pra saber se estava subindo ou descendo eu achei que pudesse ser o irmão do Matheus vindo dar um tempo aqui como ele sempre fazia.

-Caio!

Eu chamei. A figura voltou a cabeça para mim e depois começou a subir a escada.

-Espera eu preciso de ajuda!

Andei o mais rápido que pude apesar do meu pé, atrás de mim algumas pegadas sangrentas iam marcando o caminho por onde eu vim. O homem terminou de subir a escada e se jogou desajeitadamente para dentro da janela. Eu escutei algumas coisas sendo derrubadas quando ele caiu lá dentro. Ao pé da escada, finalmente, eu apoiei o pé direito no primeiro degrau. O pé esquerdo era doía demais naquele degrau fino e gelado de alumínio. Eu não sabia como ia conseguir chegar ao topo daquela escada mas mesmo assim apoiei o pé o mais rápido que pude. Só tempo suficiente para o pé direito chegar ao próximo degrau e também para eu soltar um grito de dor.

Na janela um homem calvo apareceu. Ele vestia o casaco marrom e tinha em sua boca um cigarro. Seu rosto era perfeita normal e comum, não fosse o que ele fez a seguir eu nunca conseguiria guardar em minha memória nada sobre aquele homem. Ele pegou a ponta da escada que estava apoiada lá em cima no parapeito da janela e começou a sacudir para me derrubar. Provavelmente, não fosse o pé machucado eu nunca teria caído para trás como caí. Ainda hoje a ferida mal cicatrizada no meu pé esquerdo não me deixa esquecer esse momento em que tudo deu errado de vez.

Enquanto eu estava no chão ele começou a recolher a escada, um degrau de cada vez.

-Filho da puta!

Me levantei de um pulo e me agarrei ao último degrau momentos antes dele ficar totalmente inalcançável para mim. Agarrado ali com as duas mãos e ele na outra ponta ficamos em um cabo de guerra que durou não sei quanto tempo pois ele não tinha força para tomar a escada de mim nem eu conseguia puxar ela de volta. Aí ele teve a ideia de ao invés de puxar com toda sua força, empurrar a escada de volta bem na minha cara. O degrau de alumínio gelado me atingiu em cheio no lábio superior que imediatamente voltou a sangrar.

O gosto de ferro na minha boca foi a última coisa que eu senti enquanto via aquela escada ser lentamente recolhida para dentro daquela janela. Depois, ele olhou para mim e sorriu como se estivesse muito satisfeito por dar com a escada na minha cara e me deixar ali no chão, cercado de poças de sangue que iam se misturando às minhas lágrimas. Antes de fechar a janela para sempre e me deixar aqui, neste mundo onde sempre é fim de tarde e o tempo não passa, ele deu uma tragada funda em seu cigarro e jogou a bituca ainda soltando fumaça no chão de cimento ao meu lado.

FIM

HWhere stories live. Discover now